Cinema com Rapadura

Críticas   segunda-feira, 17 de abril de 2017

O Ornitólogo (2016): perspectivismo cristão

Utilizando-se de uma miscelânea de elementos simbólicos, mitos pagãos e biografias cristãs, o cinema português apresenta mais um produto bem acabado de um de seus mais pródigos filhos

O realizador João Pedro Rodrigues pode não ser conhecido pelo grande público, mas no circuito independente é um nome tido como um dos mais relevantes. Justamente por isso, ganhara uma retrospectiva de seus longas e curtas-metragens no renomado Instituto Moreira Salles, no Rio de Janeiro, organizada pessoalmente pelo realizador Kléber Mendonça Filho (diretor de “Aquarius”), atualmente curador do centro cultural. Herdeiro de uma tradição centenária de mestres como Manoel de Oliveira (1908-2015), João Pedro une-se a outros dois patrícios – Miguel Gomes (“Tabu”, 2012) e Pedro Costa (“Cavalo Dinheiro”, 2014) – para formar o eixo central do que atualmente se pode chamar de cinema português. Cada um à sua maneira, eles se cruzam na esquina entre as tradições e as inovações temáticas, honrando tanto a herança histórica nacional, quanto levantando novas demandas de reflexão.

Com isso, o diretor – junto com seu parceiro criativo de muitos anos, o moçambicano João Rui Guerra da Mata – apresenta-nos mais um filme esteticamente irrepreensível, embora um tanto quanto hermético em suas inversões simbólicas e truncado em seu fluxo narrativo. “O Ornitólogo” acompanha a expedição de Fernando (o francês Paul Hamy, de “Transtorno“) em busca das cegonhas-pretas pela cauda de um rio, mas quando um acidente muda seu caminho, ele se vê imerso numa jornada mística pela floresta, onde figuras antigas e modernas se sucedem, guiando-o pelos caminhos de uma autodescoberta transcendental.

Sei que meu resumo da narrativa disse muito pouco ou quase nada sobre a trama. Sem querer estragar os caminhos que seu intricado roteiro apresenta, é preferível não revelar detalhes sobre os tipos e as situações com que Fernando se depara, maiores preciosidades dessa história. Vencedor do prêmio de direção no Festival de Locardo pelo filme, a trama é uma viagem lisérgica pelos já-ostensivamente-explorados mistérios da floresta, mas dá um passo além em comparação a outros filmes que jogam seus protagonistas em suplícios íntimos em meio à Natureza ao agregar elementos da cosmogonia cristã em seu enredo. Com isso, o que se tem é um híbrido de paganismo e cristianismo, onde rituais são encenados por figuras lúdicas e logo sucedidos por santuários mal cuidados que surgem de repente no meio da mata.

Embora fuja em muitos momentos de qualquer padrão lógico concebível, a história também tem uma dimensão intimista e autobiográfica para seu realizador, pois assim como o protagonista, João Pedro era um biólogo apaixonado pela ornitologia. Tal autorreferência explícita – que não se limita a esse elemento, mas surge com muito maior força mais adiante, quando a persona do protagonista se fragmenta –, como sempre, tem seus benefícios e prejuízos. Às vezes pode ser sentida como autoindulgência, ou seja, alto apreço de si mesmo, movimento ególatra que pode incomodar uma plateia mais interessada em desvendar um enredo misterioso. Mas por vezes também pode revelar honestidade, um realizador que veste-se de uma estética destacada e dezenas de metáforas religiosas complexas para revelar segredos íntimos de sua personalidade.

Outra ousadia é a representação direta do homossexual português, nacionalidade que não é das mais progressistas na questão. Justamente por esse ponto, explorado regularmente em sua cinematografia, João Pedro é facilmente caracterizado como um cineasta queer, ou seja, dedicado à temática de gênero e às questões da sexualidade. Porém, assim como outros filmes seus, como “Morrer Como um Homem” (2009), delicada abordagem sobre a transexualidade, o espectador rapidamente percebe que os elementos invocados pelo realizador têm um escopo muito mais amplo. Em “O Ornitólogo”, João Pedro oferece-nos uma verdadeira hagiografia, porém, estilizada, que mistura a biografia dos santos com a jornada de seu próprio protagonista.

Herdeiro de uma cultura marcada pelas tradições religiosas, notadamente cristã pela vertente católica, os universos temáticos do realizador giram em torno de seu mundo e espaço, mas são ressignificadas por um representante de uma geração globalizada, recheado de influências do mundo exterior ao seu pequeno país. É por isso que, por mais descabida que seja a trama – em alguns momentos caindo verdadeiramente no nonsense –, essa loucura toda não deixa de ser intimista e autoral.

Honrando os pais do cinema português, João Pedro e seus contemporâneos oferecem ao mundo uma abordagem particular de expressar, visualmente, ideias e sentimentos. Evidencia-se, com isso, a antiguidade das produções daquele país e o “espírito velho” de seu povo, apêndice da Europa que está mais para uma embarcação (a “Jangada de Pedra” de Saramago) do que um pedaço de terra.

Cineasta do mundo, ligado às influências culturais mais atualizadas e alternativas vindas do Ocidente, sua estética moderna e bem calibrada dá mostra disso, em planos perfeitamente iluminados e posicionamentos ideais. A câmera “perspectivista” que olha seu protagonista através dos pássaros (que veem outra coisa além de Fernando) é também um toque de gênio de um realizador consciente de seus objetivos. Já no conteúdo, inserindo na trama duas peregrinas chinesas que cruzam com o protagonista, parece criar um símbolo desse neo-colonialismo que hoje a China empreende sob o mundo pela via econômica, vis-à-vis àquele tradicional colonialismo que os exploradores portugueses um dia impuseram ao mundo (e, mais especificamente, a nós brasileiros).

Essa produção luso-brasileira é, assim, um espécie de exploração colonial interna: ao invés de novas terras à vista, mergulha-se nesse homem lusitano moderno, com suas idiossincrasias culturais, para explorar sua mais íntima subjetividade. Nessa dinâmica clássica de homem versus natureza surgem pássaros, deuses e demônios, numa história em que sobram perguntas e, felizmente, faltam respostas.

Vinícius Volcof
@volcof

Compartilhe