Cinema com Rapadura

OPINIÃO   segunda-feira, 03 de dezembro de 2007

Culpa é do Fidel, A

Retratar o olhar infantil em períodos tortuosos de política ou guerra tem sido tema freqüente na cinematografia de vários países. O drama francês “A Culpa é do Fidel” aparece em posição especial por conseguir não apenas o mérito de falar de política, mas também por nunca esquecer a graciosidade infantil em uma trama sensível e carismática.

Julie Gavras, filha do famoso cineasta grego Konstantin Costa-Gavras (“Z” e “A Confissão”), mostra a influência do pai ao tratar da política instaurada na França de 1970, não pela visão dos jovens revolucionários, mas como atingiu a vida da pequena Anna (Nina Kervel-Bey). Aos 9 anos, a garota vê a tranqüilidade da vida bruscamente alterada após a morte de um tio espanhol, um comunista convicto. Com a eleição de Salvador Allende à presidência do Chile, os pais de Anna mudam o cotidiano familiar. Eles se tornam “pobres” e vão morar em uma casa menor, onde constantemente recebe visitas de estranhos “barbudos”. Sentindo-se incomodada e incompreendida, Anna busca explicações para as mudanças e tenta, sempre com o olhar infantil, entender os assuntos de gente grande.

A filha Gavras escreve uma história que prima pela inocência, mas que sabe sacudir e criticar quando é preciso. Gavras faz da pequena Anna um instrumento para medir a conscientização política da época, que pode ser livremente aplicada aos dias de hoje. Tudo que Anna quer é saber por que sua vida deixou de ser diferente e entender o motivo de tantos conflitos dos adultos. Anna assiste de primeira fila a dramas pessoais dos entrevistados de sua mãe, ou a discussões peculiares entre os pais. Além disso, precisa se contentar em ser afastada das aulas de catolicismo do seu colégio e viver no meio de estranhos que discutem aborto, socialismo, Fidel, eleições, entre diversos assuntos que não conhecia.

A partir do momento em que se envolve com essa realidade, Anna vai medindo seu olhar a cada passo vivido, sendo primordial para o crescimento de seu personagem o caráter opinativo que possui. Em várias discussões, parece mais que Anna tem argumentos suficientes para uma orientação política do que os adultos, deixando-os em maus lençóis. Em contrapartida, as formas com que Anna descobre os valores de solidariedade, bem como se conscientiza do socialismo são belíssimos momentos que Gavras consegue extrair de sua história. A cineasta ressalta que não é preciso falar difícil para se fazer entender, muito menos subjugar a inocência infantil em assuntos até então complicados.

O que Anna aprende, ou passa a compreender, ela tenta aplicar em seu cotidiano. Um dos melhores resultados do roteiro consiste na relação dela com o irmão mais novo. No início, Anna se irrita com a hiperatividade de François, mas uma relação curiosa entre eles vai nascendo. Ao mesmo tempo em que eles funcionam como personagens opostos de duas infâncias, a de François longa dos assuntos de casa e a de Anna começando a ser entendida, a cumplicidade entre eles cresce. Em um determinado momento, uma amiguinha de Anna questiona porque eles mudaram para uma casa menor com um quarto que ela divide com François. O garotinho justifica que é bem melhor assim, pois não consegue sentir medo dormindo com a irmã. Neste momento, o sorriso de Anna acima de qualquer contexto político prevalece e gera comoção. O mesmo acontece também quando a garotinha se irrita com os pais e foge de casa de mãos dadas com François para lugar nenhum. É assim que ela responde a um questionamento feito por seu pai no início do filme, se quando François estivesse em perigo ela o ajudaria. É como se fugindo Anna protegesse o irmão menor da agressividade que começou a ver no mundo.

Gravas sabe dosar o teor político e o infantil na trama. Da mesma forma como o brasileiro Cao Hamburger registrou em “O Ano em que Meus Pais Saíram de Férias”, a cineasta pega a inocência de Anna e gera discussão. A diferença para “O Ano” é que Hamburger centraliza muito mais na história de vida do protagonista, que não se impõe à realidade política. Em “A Culpa é do Fidel”, desde o título é possível perceber uma intervenção em tudo da personagem principal. Para isso, Gavras encurrala também o espectador em momentos angustiantes de descoberta de Anna. Um desses é quando os pais levam as crianças para protestarem nas ruas e são agredidos pela polícia. Enquanto todos correm, Anna se encontra aterrorizada e sozinha meio ao alvoroço, e a situação não gera piedade, e sim angústia para os extremismos políticos que muitos militantes alcançam. A sensação de impotência do espectador é aniquilada quando o pai da garota a agarra e diz que eles precisam correr.

Além de uma história irretocável, Gavras conduz o filme com o olhar sempre próximo a Anna. Os closes são necessários para desvendar a expressividade de Nina Kervel-Bey, que consegue levar toda a película nas costas sem apresentar uma mínima regressão de personalidade de seu papel. Kervel-Bey cria Anna de forma emburrada, opinativa e carismática. O François do simpático Benjamin Feuillet, mesmo com uma participação menor no contexto geral da trama, consegue arrancar sorrisos a cada peripécia ou gracinha feitos. No elenco adulto, Julie Depardieu e Stefano Accorsi trazem a maturidade no nível correto que balanceia o pano de fundo político. Os demais atores só acrescentam pontos positivos à trama que flui com naturalidade e gostosura.

Mais do que um filme político, ou mais do que um filme sobre crianças, “A Culpa é do Fidel” discute e demonstra a conscientização política da sociedade. Em seus minutos finais, a lição fica dada, principalmente com o plano em que Anna chega a uma nova escola e crianças brincam no pátio, como se desconhecessem o mundo que acontece lá fora. Um filme delicado que transita em todas as nuances infantis sem cair nos clichês. Um filme que emociona e conquista à primeira vista e digno de aplausos de pé.

Diego Benevides
@DiegoBenevides

Compartilhe

Saiba mais sobre