Cinema com Rapadura

OPINIÃO   quinta-feira, 11 de outubro de 2007

Morangos Silvestres

Em “Morangos Silvestres”, o famoso e aclamado diretor Ingmar Bergman apresenta-nos a saga reflexiva e introspectiva de um sujeito chamado Isak Borg. Já em idade avançada, depois de 50 anos trabalhando na medicina, Isak é convidado para fazer uma viagem à outra cidade (Lund) para que possa receber um prêmio [i]honoris causa[/i] em reconhecimento por seus serviços médicos prestados em favor da humanidade.

Na noite que antecedia essa premiação honorífica, o Dr. Isak teve um marcante sonho premonitório e projetivo, pois viu seu presente monótono e sua morte iminente representados, nesse sonho, pela visão de si mesmo dentro de um caixão. Na ocasião, estava portando um relógio sem ponteiros, com o rosto desfigurado e com o corpo todo oco e frágil. Após esse decisivo evento, Isak desiste do avião e decide fazer de carro todo o percurso até a cidade que, além de lhe homenagear, ainda abriga por coincidência, seu filho que também é médico. No caminho, ele se vê na obrigação moral de dar carona não só a sua nora que está brigada com seu filho e de deseja ir de encontro a ele, mas também a outras pessoas com quem se depara incidentalmente.

Durante todo o percurso, Isak Borg interrompe a viagem por apenas quatro vezes. Na primeira parada, o personagem visita a casa onde ele e toda sua família passavam os verões décadas atrás, logo depois sofre um pequeno acidente e se vê obrigado a parar mais uma vez. Mais adiante, pára em outra cidade afim de visitar sua quase centenária mãe e, por fim, ocorre uma última parada para que possam descansar um pouco e “esticar as pernas”. Ao chegar na cidade de Lund, Dr. Isak é agraciado com pompas e tudo que se possa esperar de uma grande homenagem. Depois vai à casa de seu filho, dorme e fim. Ué?! Você deve estar se perguntando: Mas que filme é esse? Nada acontece? Não há trama nenhuma a ser resolvida ou desvendada?

Realmente, de concreto não acontece absolutamente nada durante todo o filme e não é por acaso que “Morangos Silvestres” é visto por muitos, incluindo alguns críticos, como sendo um filme sem graça, monótono, maçante e até mesmo, insuportavelmente, melancólico. Então porque ele ainda é visto como uma obra-prima por muitas pessoas?

Não é difícil responder a essa questão e o que ocorre é que todos nós temos como um dos principais componentes constituintes de nossa personalidade a atitude introvertida e a atitude extrovertida. Apesar de todos nós termos as duas e usarmos as duas de acordo com o momento e conveniência, há sempre uma predominância, um domínio geral de uma delas. Se você é normalmente expansivo, comunicativo e sociável não há dúvidas de que você é predominantemente extrovertido. Porém, se você é mais voltado para dentro, extremamente reflexivo, pouco prático e sempre atento à subjetividade das coisas, então com certeza você é dominado pela atitude introvertida. É ai que mora a causa de você gostar ou não deste tipo de filme! Como não ocorre nada de concreto, prático e objetivo, é muito fácil alguém que espere isso tudo não gostar do filme e achá-lo, até mesmo, detestável.

Em termos subjetivos, o filme é de uma complexidade tão densa, sensível e tocante que seria facilmente tema de mestrado em psicanálise, psiquiatria ou psicologia. Até por isso, que infelizmente não é possível, em apenas uma crítica cinematográfica, tentar desvendar os caminhos percorridos pelo inconsciente de Isak Borg. Em contrapartida, não é difícil expor sua personalidade em linhas gerais, assim como não é difícil avaliar tecnicamente a direção do sueco Ingmar Bergman.

Sucesso profissional, estabilidade financeira, reconhecimento social, admiração unânime, prestígio máximo e aplausos, muitos aplausos! Essas palavras resumem o perfil do médico Isak Borg. Porém, melancolia, dor, angústia, desamor, tristeza, rancor, soberba, nostalgia e culpa, muita culpa resumem o perfil do homem Isak Borg.

Logo no inicio do primeiro ato, Isak Borg diz melancolicamente que “Nossa relação com as pessoas consiste em discutir com elas e criticá-las. Foi isso que me afastou delas, por vontade própria… Isso tornou minha velhice solitária”. Essa frase revela e nos apresenta o lema que será repetido incansavelmente durante toda a película, pois pena, solidão, indiferença e autoflagelo é o que Isak busca para si mesmo o tempo todo. Suas reflexões internas sempre são regidas pelo que chamamos, em psicanálise, de pulsão de morte que, em contra à pulsão de vida, nos leva ao suicídio gota a gota, a autodestruição interna, a vitimização mórbida (ser coitadinho, falando popularmente) e ao isolamento afetivo. Tanto é fato isso, que já quase no terceiro ato Isak confessa para sua nora: “Parece que quero me dizer algo que não quero ouvir acordado; que estou morto, apesar de vivo”.

E a direção de Bergman? É realmente uma obra-prima? É um marco cinematográfico como muitos dizem? A meu ver não! Sinceramente sou incapaz de vislumbrar o motivo de essa direção ser taxada como primorosa e irretocável. Apesar de confessar que me agradou profundamente o uso abundante de tomadas em Plano Americano (que se filma a pessoa do joelho à cabeça) sobreposta por tomadas em Close-up (filma-se o rosto da pessoa) e em seguida por Super Close (detalha-se, mais ainda, o rosto), digo que me frustrou muito não ver em todo filme quase nenhuma tomada em plano geral (filma-se todo o ambiente tirando o objeto de foco) e em plano de movimento “travelling”, que é quando a câmera se movimenta em torno de um objeto (centrípeto) ou quando gira sobre o próprio eixo (centrifuga). Se Bergman tivesse o cuidado de incluir planos como esses (plano geral e movimento em travelling), talvez o resultado final fosse outro em termos de cadência e ritmo. Assim, a dinâmica como um todo teria sido melhor.

O resultado final foi uma fotografia regular, uma trilha sonora que não compromete, mas também não ajuda muito, atuações razoáveis, todavia não memoráveis, direção competente, mas não brilhante. Por fim, uma narrativa brilhantemente densa e reflexiva que, sozinha, faz esses 90 minutos de projeção valerem à pena!

Paulo Flausino
@

Compartilhe

Saiba mais sobre