Cinema com Rapadura

OPINIÃO   quinta-feira, 08 de novembro de 2007

Sétimo Selo, O

Imagine um mundo em que tudo que esteja relacionado à ciência, ao saber e a reflexão seja proibida e pecaminosa, um mundo em que a fome intensa e dolorosa seja a regra e não a exceção.

Um mundo em que as guerras estejam espalhadas por todos os lados destruindo pessoas, famílias e nações, um mundo em que a peste esteja torturando e matando quase a metade de toda a população, um mundo em que as regras sociais da vida estejam em decadência e em um colapso irreversível e total. Não se enganem! Não estou narrando a visão do inferno, nem a de um mundo pós-apocalipse!

Caos, devastação, ignorância, desalento, tortura, intolerância, fome, autoritarismo e desesperança. Essas palavras resumem o que foi a triste realidade do século XIV, que ficou marcado como um dos períodos mais terríveis da humanidade em todos os sentidos. É esse contexto histórico que Ingmar Bergman usa para retratar a busca do cavaleiro Antonius Block (Max Von Sydow, de “Hannah e suas Irmãs” e “O Exorcista”) e seu vassalo e escudeiro Jöns, por respostas acerca da Deus, morte, fé e razão.

Após dez anos lutando nas “Cruzadas”, Antonius Block volta ao seu país (Suécia medieval devastada pela miséria e pela peste negra) com sua fé profundamente abalada e questionada. Ao chegar, depara-se com a Morte (Bengt Ekerot), que lhe dá um ultimato e sentencia sua partida iminente. Ardilosamente, Antonius propõe-lhe uma derradeira partida de xadrez antes de levá-lo ao mundo dos mortos. Com essa artimanha, o cavaleiro consegue ganhar tempo para buscar respostas para suas perguntas existencialistas.

Nessa busca, Antonius conhece outros personagens (atores, bruxa, prostituta, flagelados e pintor) que, além de servirem como subtrama e alivio cômico para esse filme sombrio, ainda “marcam território”, ou seja, eles nos mostram que contexto os personagens estão imersos, qual situação o filme está inserido socialmente e emocionalmente. Um grande exemplo disso ocorre quando Jöns (vassalo e escudeiro) entra nos fundos de uma igreja e se depara com um pintor e ali estabelece um dialogo que expõe com perfeição o pensamento medieval “Estou pintando a dança da morte. Penso que um homem deve viver pelo menos até a praga atacá-lo. As pessoas pensam que a praga é uma punição de Deus. Multidões vagam pela terra chicoteando uns aos outros para agradar ao Senhor.”

Muito interessante também é o antagonismo que há nas personalidades do cavaleiro Antonius e seu escudeiro Jöns. Quando Antonius Block diz: “Nenhum homem pode viver com a Morte e saber que tudo é nada. Devemos fazer de nosso medo um ídolo e chamá-lo de Deus?” fica definido que o cavaleiro é um homem questionador, subjetivo, introspectivo e reflexivo. Já quando Jöns diz sobre si mesmo: “Esse é Jöns, ele ri da Morte, cacareja do Senhor e ri de si mesmo. Sem significado no céu e indiferente no inferno” estabelece-se como alguém cético, extrovertido, objetivo e conformista. Fica claro que são contrários, que são companheiros que se completam e se complementam exatamente por estarem em pólos opostos. Tudo isso é feito para que nós, espectadores, vislumbremos a dualidade da vida, para que tenhamos, ao nosso dispor, a opção de pensar de uma maneira mais concreta ou abstrata, mais racional ou intuitiva. Ao nos apresentar personagens assim tão opostos, Bergman nos faz um convite à reflexão e à introspecção.

Por ser uma adaptação teatral, a narrativa é altamente pausada e intensa. As idéias que emergem dela inundam o filme de questões riquíssimas em profundidade filosófica existencialista. Cada diálogo, cada seqüência que compõe esse belíssimo roteiro serviria como inspiração para livros e mais livros sobre os porquês da morte, de Deus, da hipocrisia, dos costumes e da eficiência e coerência da atitude de autoflagelo e sacrifício em prol da religião, em prol de algo invisível e intangível.

Se o roteiro e sua narrativa são mais do que brilhantes, tecnicamente os outros quesitos não ficam atrás! Os figurinos são extremamente fidedignos e de uma simplicidade tocante. Já a fotografia… Que fotografia! Que edição!

De maneira solene e impactante, Bergman usa e abusa de altos contrastes em preto e branco em todos os momentos sombrios. É genial ver como ele usa de planos fechados, de Close-ups e de Super Closes para demonstrar e intensificar o sentimento tétrico e fúnebre que domina a psique de todos os personagens. Aliás, eles são representados de maneira fantástica por todos os atores, em especial por Max Von Sydow que, com uma postura serena e adequada, efetuou um grande e memorável trabalho.

A trilha sonora e a edição de som de Erik Nordgren superaram todas as minhas expectativas e já se encontram, a meu ver, entre as dez melhores trilhas de todos os tempos. Se com os personagens secundários músicas acústicas e bucólicas deram o tom de maneira graciosa, com o protagonista e com o tema “morte” músicas sinfônicas e em coro intensamente lúgubre marcaram de maneira única esse filme.

Como finalizar meu testemunho sobre esse monumento genial de Ernest Ingmar Bergman, senão dizendo que se algum dia alguém inventou as palavras obra-prima e perfeição por alguma razão em especial, finalmente eu descobri o porquê!

Paulo Flausino
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