Cinema com Rapadura

OPINIÃO   quarta-feira, 20 de junho de 2007

Casa de Areia e Névoa

Com uma abordagem particularmente original, "Casa de Areia e Névoa" revela-se tratar de uma trama peculiar que se ambienta nas relações familiares e nos princípios individuais das pessoas, construindo seu caráter. Com um roteiro sólido, o longa agrada principalmente pelas atuações e pelo encaminhamento dos fatos, algumas vezes inesperados.

A história conta a vida de Kathy (Jennifer Connelly), uma ex-alcoolatra que vive sozinha a desilusão de ter sido abandonada por seu marido, refugiando-se em seus medos e angústias. Neste meio tempo, uma notificação chega em sua residência, afirmando que sua casa será leiloada pelo não pagamento dos impostos de sua empresa, mas Kathy não possui empresa alguma. Como não consegue esclarecer o engano de imediato, a casa da jovem é leiloada e fica nas mãos de um ex-militar iraniano, Coronel Behrani (Ben Kingsley), que consegue supervalorizar a casa, colocando-a a venda mais uma vez, com o único objetivo de arrecadar mais dinheiro do que foi investido no leilão. Enquanto isso, Behrani vive na casa com sua família e é constantemente perturbado por Kathy, dando início a uma perturbadora briga psicológica que só consegue gerar mais dor e sofrimento para todos os personagens envolvidos.

Escrito por Shawn Lawrence Otto e Vadim Perelman, este também diretor do longa, é baseado no livro homônimo de Andre Dubus III e já havia recebido diversas propostas para ser adaptado. Como produção cinematográfica, o roteiro de Lawrence e Perelman impressiona por sua complexidade. Por mais que a essência inicial abordada pelo enredo pareça ser um tanto quanto vazia ou pouco determinante, percebe-se que a história consegue pender a uma análise brusca acerca das escolhas que fazemos e da modelagem dos nossos atos de acordo com os princípios individuais dos personagens. Após o clímax começar a se definir, é impossível negar o quanto a trama ganha profundidade, revelando-se bastante ousada ao tocar em pontos sociais pretensiosos, mas sem se envolver em um clima de clichê ou cair no fato de que alguns filmes que pretendem fazer abordagens sociais acabam forçando o desenvolvimento dos fatos para conseguir apurar algo no final, como se precisassem obrigar o público a ter algum tipo de reação ou emoção. O investimento ao trabalhar minimamente na evolução dos acontecimentos é crucial para que tudo que vai sendo articulado pelo roteiro ganhe credibilidade e dê um significado maior à película. A harmonia captada por Perelman entre o roteiro e a direção é um aspecto interessante de analisar, já que conseguimos perceber uma certa afinidade e consciência do que era preciso ser feito para fazer uma cena render bons momentos. Usando bastante uma atmosfera obscura e fria, conseguimos ainda assim enxergar a sensibilidade pessimista do diretor, como se fosse prevenindo o público de que os pesos psicológicos e morais seriam enfocados.

Sendo seu filme de estréia, Perelman mostra-se tão seguro em sua relação com os atores e com o crescimento da trama que acaba revelando-se muito mais experiente do que muitos cineastas sem originalidade que temos atualmente. Tendo dirigido alguns curtas, o diretor faz de cada momento uma poesia que vai se degradando e mostrando que não existe caminho de volta para o arrependimento dos personagens. A câmera mostra-se responsável em procurar significados a cada tomada registrada e desliza pelos personagens, desafiando-os a terem alguma reação, conseguindo variar corretamente as nuances de cada elemento em cena. Outro fator responsável pela boa condução de Perelman foi o olhar fotográfico de Roger Deakins, que consegue extrair e fazer a marcação da câmera de maneira original, registrando momentos impecáveis, abusando da escuridão, de sombras, névoas e paisagens. Além disso, a escolha da trilha sonora e a direção de arte são mais aspectos técnicos que dão a "Casa de Areia e Névoa" um brilho a mais em sua realização.

Talvez o elemento que mais se destaque juntamente com o roteiro é o elenco assustadoramente competente que foi utilizado. Essa combinação permanece inseparável, já que o roteiro oferece personagens bastante sólidos, cujas personalidades são dignas de uma dedicação intensa, para que não aparenta superficialidade em cena e desestruture o andamento da trama. Para tais papéis bem elaborados, bons atores com a capacidade de superação vigente. Jennifer Connelly não só exala sensualidade e beleza, como mostra-se dotada de um descontrole emocional rico de análise. É até um pouco controverso Kathy ser "uma faxineira abandonada pelo marido", e esse choque inicial que o público tem é bastante positivo se analisadas as condições da personagem de ser capaz de conseguir o homem que quiser. Kathy vivia um momento de solidão e sensibilidade tão intensos que sua relação com Lester (Ron Eldard) põe em jogo se entre eles havia algum tipo de admiração ou se eram apenas dois refúgios para esconder a vida medíocre que viviam. Apesar da grande capacidade de Connelly, sem dúvidas o maior destaque do filme é de Ben Kingsley. Indicado ao Oscar por sua interpretação de Coronel Behrani, em alguns momentos não conseguimos imaginar que ali está um ator altamente preparado e convincente para intensificar a história. Existe um quê enorme de credibilidade que faz Kingsley variar as emoções do público entre o ódio e a clemência, sem entrar no senso comum de um "vilão" que se arrepende de seus atos. A pauta do filme não trata de arrependimento em si, mas de situações que precisamos enfrentar devido aos nossos atos.

Kingsley protagoniza, inclusive, uma das cenas mais emocionantes e perturbadoras do longa, quando em um determinado momento, está em jogo a vida de um ente querido e toda a sua redenção gera um confronto emocional intenso. Sua virilidade passa confiança ao espectador e cativa mesmo com seu jeito particular de agir em relação à cultura americana posta em evidência. Este é outro ponto bastante proveitoso do roteiro, onde é mostrada de forma exímia os conflitos étnicos, sociais e culturais dos seus personagens. Ainda sobre o elenco, seria um erro não citar a atuação de Shohreh Aghdasloo, indicada também ao Oscar de Melhor Atriz Coadjuvante, que consegue demonstrar todos os seus valores pessoais a cada cena em que aparece, além de utilizar o processo comunicativo para se defender de um mundo particularmente bárbaro, ao mesmo tempo entrando em conflito consigo mesma sem conseguir entender por completo o inglês falado pelos demais personagens. Além de seu bom desenvolvimento técnico, Aghdasloo é uma atriz que consegue impactar com o olhar e por uma simples fala dita com sua voz e sotaque pesados e originais.

Por mais que não atinja um grau máximo de excelência, "Casa de Areia e Névoa" é passível de discussão dos pontos de vista psicológicos e comportamentais, além de mostrar-se um exemplo de como construir um drama bem articulado, cujos personagens sabem exercer suas funções de maneira bstante convincente. É uma obra para ser degustada aos poucos e pensada com cautela, pois cria uma relação de identificação e angústia entre o que é exibido, juntamente com o público, que acaba se sentindo impotente diante a todas aquelas realidades apresentadas. Um filme sensível e de uma riqueza inestimável.

Diego Benevides
@DiegoBenevides

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