Cinema com Rapadura

OPINIÃO   quarta-feira, 21 de fevereiro de 2007

Cartas de Iwo Jima

"Cartas de Iwo Jima" é o filme-irmão de "A Conquista da Honra". Enquanto aquele tratou do conflito de Iwo Jima do ponto de vista americano (e de maneira mais superficial), "Cartas" mostra a batalha do ponto de vista japonês. Dotado de uma sensibilidade incrível, o filme nos leva a nos importar realmente com seus personagens, fato que se agrava por sabermos da derrota japonesa e de que um final feliz é extremamente improvável.

Clint Eastwood é um diretor extremamente corajoso. Retratar a batalha de Iwo Jima do lado americano é fácil, principalmente se tratando de um conflito vencido por seu país. Mas levar o foco para os japoneses e ainda fazer com que nos importemos com eles exige, não só valentia, mas sensibilidade para entender um povo de cultura tão complexa.

Falado quase que totalmente em japonês (o que confere maior autenticidade ao filme), "Cartas de Iwo Jima" tem dois protagonistas: o recém chegado à Iwo Jima, General Tadamichi Kuribayashi (Ken Watanabe), militar de carreira, que estudou táticas militares nos EUA, e o Soldado Saigo (Kazunari Ninomiya), que não vê a defesa de Iwo Jima (e, em última análise, a guerra em si) com bons olhos.

Tanto Saigo quanto Kuribayashi possuem algo em comum: ambos são mal-vistos por suas idéias. O soldado, desanimado com a guerra e com o império, sabe que não deveria estar ali. "Não sou um soldado, sou um padeiro", diz ele em um momento do filme. Com seu negócio levado a falência, sendo arrancado de sua mulher e não tendo visto o nascimento da filha, tudo por conta da guerra, ele é o contraponto a propanganda do governo japonês. Já o General é extremamente fiel ao império, apesar de saber que o rigor das tradições pode levar seu exército à derrota e vê suas tentativas de modificar o modo de pensar de seus soldados sendo extremamente mal recebidas, principalmente por seus oficiais mais velhos. Kuribayashi não tem de vencer somente o exército americano, tendo pela frente problemas com seus próprios subordinados, sejam soldados doentes, amotinados ou, até mesmo, suicidas.

Os personagens secundários são tratados com bastante cuidado pelo filme, vários deles com momentos marcantes, mas dois merecem ser destacados: o soldado Shimizu (Ryo Kase), vindo de uma escola militar de elite, é visto por seus colegas como um suspeito de ser um espião enviado às tropas de frente para ver se algum deles está cometendo atos que possam ser considerados "apatrióticos" (conceito bastante conhecido por nós brasileiros durante a ditadura militar) e o oficial Nishi (Tsuyoshi Ihara), cavaleiro de renome que disputou as Olimpíadas de 1938 em Los Angeles e morou um tempo na Califórnia. Culto, refinado, gentil e fiel às convicções imperiais, é um amigo leal de Kuribayashi e tem um dos momentos-chave do filme, junto de um jovem soldado americano.

O roteiro, escrito pelo ótimo Paul Haggis (de "Menina de Ouro" e "Crash – No Limite") e pela estreante Iris Yamashita – americana nascida e criada – é feliz ao enfocar os personagens e suas relações naquelas situações extremas, nos levando a compreender o que passa pela cabeça dos soldados, através de suas cartas, e fazendo com que torçamos que o impossível aconteça e que aqueles personagens tenham um final feliz (sentimento também presente em "Vôo United 93", de Paul Greengrass). A câmera de Eastwood, como sempre, não nos poupa dos detalhes viscerais do conflito, podendo desagradar alguns de estômago mais fraco. Essa é uma decisão, no mínimo, digna de aplauso, já que se trata da única maneira do espectador compreender o sofrimento infligido pela guerra a alguém (e é incrível ver os soldados americanos como ameaças a personagens com que nos relacionamos durante o filme). Com sua direção segura, ele faz com que a história seja tocante, sem jamais soar melodramática. A fotografia sóbria de Tom Stern ajuda a ressaltar o realismo da câmera de Eastwood. Já a edição do filme, feita por Joel Cox e Gary Roach, nos mantém atentos aos acontecimentos e os flahbacks são inseridos de maineira adequada e nos momentos certos, acrescentando à história, não tirando o foco desta (algo que ocorreu com "A Conquista da Honra", diminuido muito a força do filme).

Interessante notar que vários detalhes de "A Conquista da Honra" e deste "Cartas de Iwo Jima" se ligam. Por exemplo, a questão dos soldados japoneses serem treinados a atacar enfermeiros, o desembarque das tropas americanas, o ataque durante a noite e a enfermaria dos aliados, tornando a experiência mais completa ao ver ambos os filmes, mas não é necessário assistir a um para compreender o outro.

Com uma história emocionante, atuações impactantes e uma direção impecável de Cilnt Eastwood, "Cartas de Iwo Jima" é um filme que merece o renome que está tendo e é (mais) uma prova de que Eastwood é, apesar de sua idade, um dos melhores diretores em atividade no momento, além de um dos mais sensíveis.

Thiago Siqueira
@thiago_SDF

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