Cinema com Rapadura

OPINIÃO   domingo, 14 de janeiro de 2007

C.R.A.Z.Y. – Loucos de Amor

Mostrando que o cinema canadense também é bom, "C.R.A.Z.Y. - Loucos de Amor" é absolutamente um dos melhores filmes que chegam aos cinemas esse ano. Mais que uma história sobre ser aceito homossexual, o longa trata sobre a tarefa difícil de aceitar-se como tal.

Vencedor de inúmeros prêmios em diversos festivais pelo Canadá, "C.R.A.Z.Y." foi campeão de bilheteria, e agora nos prova o porquê de todas as honras que o cercaram pelos festivais. Foi mais do que justo.

A história da família Beaulieu – tradicional e religiosa – nos é contada em três períodos distintos (com pequenos espaços de tempo entre eles), e traz em todos eles a luta de Zachary Beaulieu em tentar ser exatamente aquilo que seu pai espera que ele seja. E isso toca profundamente o espectador, que se identifica com isso. Afinal, todos os filhos de certa forma procuram durante a vida justamente isso: a aprovação dos pais, a aceitação, aquela expressão afirmativa que indica que você está fazendo o certo. Seja nos relacionamentos, ou na faculdade que você resolveu cursar, ou até mesmo nas escolhas bobas e diárias que você faz. Mas aí é que fica a questão: o que é exatamente certo?
Zachary vive atormentado porque é homossexual, sente e sabe disso, mas sabe que não é algo que seu pai suportaria. E ele adora o pai. Mais que isso: desde criança, é o seu exemplo, o seu ícone. Por essas razões, ele recusa assumir-se gay, porque tudo que ele quer é ser exatamente aquilo que corresponderia às expectativas do pai: o garoto que está o tempo todo provando que é o típico machão – aquele que briga na escola, tem namoradas e as leva para dormir em casa escondidas, sob o olhar orgulhoso do pai. O próprio Gervais (o pai) inúmeras vezes tem a nítida impressão de que o filho é gay, mas recusa-se a ver isso. A não ser quando o fato torna-se absurdamente óbvio, situações em que ele promove discussões e questionamentos exaustivos, que tem como um único objetivo obter a negação do filho e garantir sua própria tranqüilidade. Até porque o que diriam os vizinhos se soubessem que ele tinha um filho gay?! Como poderia ter saído dele um garoto que não fosse tão másculo quanto ele? Até enviar o rapaz a um psicólogo Gervais tenta, mas inútil. Se ele não quer ver o óbvio, e mais ainda aceitar, de que adianta quaisquer desses recursos?! Gervais prefere convencer a si mesmo de que nada acontece e que seu filho é tão heterossexual quanto ele mesmo.

A única alternativa de Zac então é ir levando enquanto possível for, segurando-se na compreensão da mãe, que não sabe exatamente explicar em que aspecto ele é diferente, mas o apóia de qualquer maneira e torce por sua felicidade – atribuindo a ele um dom, que o faz especial em seu mundo. A relação dos dois é extremamente comovente, tendo eles um relacionamento tão forte que mesmo à distância os dois sentem um ao outro e ajudam-se nesse ínterim.

Jean-Marc Vallée conseguiu trabalhar com enorme sutileza, sensibilidade e profundidade o amor. O amor do pai pelos filhos, o amor da mãe pelo filho que tentava se encaixar a todo custo e mais ainda: o amor do filho pelo pai que representava um ídolo, e pelo qual valeria todo e qualquer esforço – inclusive o de viver uma vida que não era sua. A revolta do garoto durante a adolescência e a tentativa frustrada de rebelar-se contra um sentimento que existia dentro de si mesmo passam a fazer parte dessa encruzilhada em que ele viveria por amor ao pai e pela necessidade de sentir que o pai se orgulhava dele.

Com planos caprichados, a captação da história transforma-se em uma vida que leva o público a viver junto deles. Uma realidade que se torna possível de existir por aqueles minutos de exibição, e torna clara a intenção do diretor de nos fazer percorrer juntos aqueles trajetos. É bonito de se ver. Tem uma incrível percepção estética da criação e composição da imagem, e podemos conferir diversas associações, tais como a quase constante comparação de Zac com Jesus, tendo ele inclusive nascido no mesmo dia 25 de dezembro do segundo. Óbvio que não é uma comparação que corresponde ao exato, mas fica claro que o nosso protagonista deverá passar por várias provações e sofrer uma quase obrigatória crucificação em vida: se por um lado ele vive a vida que seu pai deseja, seu destino é enclausurar-se em si mesmo, sufocando-se cada vez mais; e se por outro ele assume sua verdadeira opção sexual, ele estaria então fadado a perder o pai e seu amor. Em qualquer escolha, ele sairia perdendo bastante.

A montagem carrega a boa tarefa de saber que trabalhará sempre com bons planos, o que deve ter ajudado bastante (de certa forma) Paul Jutras (o responsável pela edição), mas nem por isso facilitado seu trabalho. O caminho percorrido pelos planos e seqüências, proporcionados pelo minucioso roteiro (também com autoria de Jean-Marc Vallée, em parceira com François Boulay), nos leva ao universo de auto-conhecimento que Zachary vive no decorrer dos anos. Quando terminamos de assistir, temos a impressão de que o filme teve várias horas de exibição, quando na verdade acompanhamos pouco mais de 120 minutos de película. É uma vida que está passando, muitas situações acontecem ali. É de uma sagacidade impressionante conseguir passar essa história para as telas, transformar observações em texto.

Com também uma excelente trilha, "C.R.A.Z.Y." traz na bagagem hits de David Bowie, Rolling Stones, Pink Floyd e Queen. O decorrer da trama é praticamente narrado com auxílio das músicas, que tomam extrema importância para o estado de espírito do protagonista, liberado sempre através das canções. Tamanha importância teve a trilha na história que o próprio diretor do filme precisou reduzir seu cachê para auxiliar no pagamento dos direitos autorais, que saíram por $ 530 mil dólares.

Mas tudo isso, claro, não teria sido possível sem o elenco de primeira que Vallée conseguiu reunir para transformar linhas em uma quase realidade, ou mais claramente: numa ilusão de realidade. Michel Côté (Gervais), Marc-André Grondin (Zachary) e Danielle Proulx (Laurrianne, a mãe), encabeçam esse elenco, trazendo muita experiência e solidez a esses personagens, protagonizando as cenas mais emocionantes do filme, nos mostrando pessoas que poderiam perfeitamente ser alguém que conhecemos. Eles são de fato uma família, somados aos outros filhos do casal, interpretados pelos atores Maxime Tremblay (Christian), Pierre-Luc Brillant (Raymond), Alex Gravel (Antoine) e Félix-Antoine Despatie (Yvan).

Com uma beleza que consegue tocar o coração do espectador, o filme é mesmo uma somatória de fatores, gestos e sentimentos, assim como uma família. O tempo todo está encaminhando-se para provar que esse mesmo somatório é o que faz com que funcione tão bem. A principal música da trilha é a cantada por Patsy Cline, "Crazy", que é a preferida de Gervais e que por sua vez representa as iniciais daquilo que ele mais ama no mundo: seus filhos, Christian, Raymond, Antoine, Zachary e Yvan. O amor movimenta a trama, e é ele que fará com que a vida dessas pessoas se encaminhe exatamente para o que ela deve ser.

Beatriz Diogo
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