Cinema com Rapadura

OPINIÃO   domingo, 01 de fevereiro de 2009

C.R.A.Z.Y. – Loucos de Amor

De uma sensibilidade fora do comum, “C.R.A.Z.Y.” chega para mostrar porque ganhou 33 dos 37 prêmios pelo qual concorreu desde 2005, quando estreou no Canadá e conseguiu movimentar mais de um milhão de espectadores aos cinemas de lá. Uma simples mistura de um roteiro inigualável, com uma direção estrondosa e um elenco absurdamente fantástico.

Não existe um fator que define o que “C.R.A.Z.Y.” possa significar para cada um que acompanha as mais de duas horas de duração. Filmes que abordam problemas familiares já não são novidades no cinema internacional e está cada vez mais difícil encontrar alguns deles que possam fugir um pouco dos estereótipos. Não que este longa não tenha seus formatos similares, coisa que comentarei mais adiante, mas a grande glória conseguida nele é que sua condução e o fato de conseguir mexer com a subjetividade da plateia foram fatores essenciais para ser um arrebatador de fãs.

O longa conta a história dos Beualieu, uma família normal de Quebec dos anos 60, que segue seus preceitos religiosos e sociais, mas que precisam saber lidar com os problemas vividos dentro da própria casa. Gervais e Laurianne são os chefes da família e representam praticamente o oposto um do outro. O pai ama de acordo com as bases conservadoras de sua vida, enquanto a mãe simboliza aquele metódico amor materno, capaz de mover montanhas pelos filhos. O casal teve a sorte de gerar cinco filhos homens: Christian, Raymond, Antoine, Zachary e Yvan (daí a abreviação para C.R.A.Z.Y.). Estes cinco jovens são retratados em três épocas diferentes e a história é contada pelo quarto filho, Zac, um belo rapaz que possui dons “sobrenaturais” e descobre ter tendências homossexuais, negando-as para não deixar de ser amado pelo pai, que não o aceita.

Tratar a homossexualidade talvez esteja até na moda, mas tenha certeza que “C.R.A.Z.Y.” tem um quê de diferente e tal diferença não se apresenta somente nos fatos aos quais somos cúmplices, mas pelo formato com que é conduzido. A história trabalha tantas abordagens em seu enredo, muito além da homossexualidade, como também o amor que move uma família, junto com suas contradições e desafios pessoais que todos nós sempre passamos dentro de casa.

O longa conta a história de uma vida toda em duas horas, então se preparem para sofrer, rir, crescer e chorar junto com os personagens. Somos completamente bombardeados de fatos que não nos dão tempo para respirar e isso cria uma atmosfera profunda ao redor dos personagens. Para tudo tem um motivo. Do simples detalhe do pôster do David Bowie na parede do quarto até a não aceitação sexual do protagonista. Não vemos um desperdício nem exageros durante a projeção, muito menos apelações ou situações atípicas. Os clichês existem, mas são totalmente contornados e preparam a plateia para todos os fatos que determinadas ações podem gerar. Esse desarmamento que o roteiro provoca em quem assiste acaba surpreendendo, pois é completamente aceitável tudo que nos foi passado, desde os dons sobrenaturais de Zac, que são tratados de forma fantasiosa e que, felizmente, não cai no absurdo, até os momentos de conflito íntimo e global dos personagens.

A forma com que o roteiro nos faz mergulhar na história e nos lapida até mostrar seu verdadeiro objetivo é ímpar. “C.R.A.Z.Y.” não é somente um filme de auto-afirmação, mas é sobretudo sobre amor. Amor de pai, de mãe, de irmãos, de parentes, amigos; um amor que às vezes nem sabemos direito seu tamanho e sua forma. Esses amores são bem explicitados e nos fazem sentir mais próximos da realidade apresentada em tela. É impossível sairmos do filme sem ter um momento de reflexão ou sem nos identificar com alguma parte da trama.

As relações impostas pelos roteiristas Jean-Marc Vallée (também diretor) e François Boulay são fantásticas e encantam, desde a mais simples à mais arrebatadora. Como não admirar o amor de mãe de Laurianne à Zac e vice-versa? Neste caso o roteiro não busca explicações, o que se repete em vários outros momentos. Sempre permitindo que o público entenda a intenção, mesmo que não a mostre fisicamente, acaba acertando ao investir na capacidade do elenco de demonstrar todo aquele conflito de sentimentos gerado nas três fases da família. As simbologias, a sensibilidade em criar personagens profundos e saber evoluí-los na trama, e toda a competência do diretor mostram que o roteiro foi milimetricamente calculado para comover, ensinar e passar lições de vida. Vemos coisas banais acontecendo e somos alertados para elas e para aquela velha teoria de não sabermos direito lidar com aquilo que temos nas mãos, e sentirmos falta quando perdemos. Narrado desde o começo por Zac, vemos suas definições de mundo, sua vontade de não ser gay para não decepcionar o pai e seus gritos de desespero nos momentos mais difíceis de sua vida.

Como se não bastassem tantos conflitos bem trabalhados, Vallée e Boulay ainda introduzem uma trilha sonora que não somente conduz a trama, mas participa dela. Os personagens a vivem, a evoluem e a usam para demonstrar suas angústias e sofrimento. Pink Floyd, The Rolling Stones, Patsy Cline e David Bowie (a la Ziggy Stardust) são alguns dos que movimentam a trama com hits que variam do belíssimo “Space Oddity”, que por sinal provoca uma das cenas mais marcantes de toda a história, até ao tema original “Crazy”, interpretado por Patsy Cline, outra chave essencial para o andamento da história.

Inclusive a poderosa trilha sonora foi uma das mais custosas para os produtores. Os direitos das músicas foram penosos para serem conseguidos e custaram alguns dólares do bolso do diretor, que não quis construir o filme sem as músicas que havia planejado. Vallée estava tão seguro do seu projeto que talvez não esperasse tanta aclamação durante o período que ficou em cartaz no Canadá, mas tinha a plena consciência de onde estava se metendo e lucrou muito mais do que investiu. “C.R.A.Z.Y.” foi a maior bilheteria de 2005 no país e mesmo assim ainda sofreu com o protocolo para ser distribuído mundialmente. A produção foi até a escolhida para representar o Canadá no Oscar que se seguiu, mas acabou nem sendo selecionada..

Gijons, Jutras e Génies foram alguns dos prêmios que deram todo o mérito merecido ao trabalho final de Vallée. Sempre seguindo uma linha sensível, saindo ao máximo das caricaturas e procurando fazer-se entender pelo público, vemos o espetáculo pela câmera em suas mãos. Algumas vezes metódico, outras mostrando planos detalhadamente trabalhados, todas as suas imagens funcionam, colaborado pela fotografia impecável de Pierre Mignot. As possibilidades de uso da câmera que são criadas no decorrer do longa chegam somente para abrilhantar mais ainda a história. Ela não só registra os fatos, mas sabe ser complacente em alguns momentos, em outros prefere mostrar os acontecimentos crus que acabam dando um soco no estômago de quem assiste, fazendo com que consigamos perceber todo o realismo com que o enredo foi tratado. Sem falar nos usos da câmera lenta em momentos cruciais para os personagens. Vallée sabia muito bem o que retirar de cada segundo rodado. Esse conhecimento íntimo do roteiro é o que falta muitas vezes em diversas películas. Nem sempre a harmonia é convincente, acabando por prejudicar o andamento de alguns filmes, e “C.R.A.Z.Y.” mostra que Vallée não somente se portou como roteirista, mas que escreveu a história sabendo muito bem como ia filmá-la.

E o que falar do elenco? Todos os atores envolvidos no projeto, do coadjuvante ao protagonista, sabem inteiramente o que estavam fazendo. Além disso, a caracterização que vai surgindo de acordo com o avanço dos anos em cada um deles é perfeitamente convincente. O pequeno Émile Vallée, que interpreta Zac até os sete anos de idade, é uma graça e mostrou ser uma promessa para o Cinema, sempre expressivo e mostrando-se a vontade no papel. Então ele cresce e aos 15 anos passa a ser interpretado por Marc-André Grondin. É impressionante o talento de Grondin. À primeira vista, parece até que Zac foi feito para ele, já que demonstrava tanto intimismo e inteligência ao criar sua personalidade em cena, sabendo muito bem demonstrar seus conflitos pessoais. Seus outros irmãos, mesmo tendo sofrido com a crítica mundial chamando-os de “estereotipados”, cumprem realmente a função de estereótipos, até porque o roteiro não esconde que esta é a ideia: um filho nerd, um drogado, um comilão, um esportista… e “por que não um gay?”. Na ala adulta, Michel Coté e Daniele Proulx mostram a experiência esperada. Ele como o pai conservador que não vê a homossexualidade ou as drogas como algo comum, e ela como a mãe dedicada cujo amor aos filhos é maior do que o que tem a si mesma.

Com uma direção criativa, um roteiro dramático, mas com seus toques de comédia inteligente, “C.R.A.Z.Y.” é o típico filme comercial que tem tudo para conquistar milhões de fãs, e tal mérito se dá pela abordagem leve e carismática, com situações basicamente simples, mas que ganham uma proporção assustadora em cena. Cada simples peça encaixada no enredo é um por cento necessário para compor um todo inigualável que prova porque o cinema é chamado de “sétima arte”. Mais do que uma história de amor, de conflitos pessoais ou religiosidade, mas uma história sobre a vida; vida esta que pode ser de qualquer um, vida que está mais perto de nós do que imaginamos, fatos particularmente reais que fogem de caricaturas grotescas, ganhando beleza e sensibilidade. Um filme para a família, uma lição para o mundo.

Diego Benevides
@DiegoBenevides

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