Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sábado, 09 de dezembro de 2006

Filhos da Esperança

Chega aos cinemas de quase todo o país esta belíssima obra de arte, que, além de emocionar, mexe com os sentimentos do público, que sorri e chora, além de impressionar com as duras críticas, mostrando que a realidade de 2006 não está tão distante da ficção de 2027.

Em 2027, o mundo está tomado pela guerra. Todas as principais cidades do mundo sucumbiram diante a violência humana e somente a Inglaterra ainda luta para também não passar a ser história. Um retrato do passado negro da história humana volta a acontecer quando o governo prende e leva para campos de refugiados os imigrantes instalados na Inglaterra. A humanidade enfrenta um grave problema de infertilidade e há cerca de 19 anos não nascem mais crianças. É então quando todos são tomados pela terrível notícia de que a pessoa mais jovem do mundo, de 18 anos, é assassinada por motivo fútil. Isso desencadeia uma comoção mundial. É nesse cenário desolador que conhecemos Theodore Faron, um ex-ativista que, desde a morte de seu filho e conseqüente separação da mulher, Julian Taylor (ativista contra a opressão do governo). Theodore mantém um único vínculo com seu passado através de Jasper Palmer, ativista que agora vive para cuidar de sua esposa catatônica. É quando Julian volta a entrar em contato com Theodore para uma missão que, por algum motivo, ela só confia nele: conseguir os documentos necessários para levar uma refugiada negra para a costa, de forma a tirá-la do país.

Alfonso Cuarón é um diretor que é pura sensibilidade e de uma destreza impressionante. Em um mercado que existe há mais de 100 anos, criar novas seqüências de planos que possam impressionar, sem precisar apelar para grandes efeitos especiais, é o maior marco do diretor para esta produção. Aproveitando-se da linguagem cinematográfica, que, diferente da televisão, não precisa ser frenética, cheia de cortes, o diretor acaba por criar tomadas impressionantes sem cortes e de uma dificuldade que é visível ao se assistir à cena. A cena da barricada de fogo, na estrada, junto com a fuga do carro, bem como a batalha no campo de refugiados é simplesmente de tirar o fôlego e deixar qualquer espectador boquiaberto por sua qualidade.

Cuarón também enche seu filme ficcional com traços da nossa realidade. Realidade essa que vemos nos telejornais, mas que, ao mesmo tempo que próximos dos acontecimentos, nos afastam da verdadeira realidade e sofrimento. Uma verdadeira crítica à irracionalidade do ser humano em guerra, bem como o seu preconceito arraigado nas entranhas de cada um, até mesmo daqueles que se dizem supostamente sem preconceitos. O uso de imagens icônicas como o vidro quebrado em forma de uma gota, e a imagem recortada por este gráfico (da mulher que carrega em seu ventre a esperança da humanidade) remete à analogia de que uma gota de água pode mudar um cenário da seca, ou que mesmo um grande acontecimento começa com um primeiro passo. Outros detalhes como a presença dos povos judeus nos campos de concentração remetendo não só ao passado negro da história da humanidade nos campos de concentração da Segunda Guerra Mundial, como também um retrato da realidade da guerra atual. E Cuarón consegue colocar o espectador dentro desta batalha, e, de uma forma sem precisar apelar, ele consegue tocar realmente na sensibilidade do público. Também há outro ponto importante e que impressiona pela sua qualidade e sua veracidade de uma forma nunca antes tratada no cinema, mas que infelizmente aqui não poderei comentar com receio de acabar criando algum spoiler para o filme. Palmas ao roteiro do longa, que, pela primeira vez, composto por cinco pessoas, conseguiu manter uma linearidade que geralmente é o maior dos problemas para criações com este número de pessoas.

A trilha sonora composta por John Tavener é simplesmente maravilhosa. Cuarón e Tavener conseguiram criar um verdadeiro clássico ao nível de composições de Hans Zimmer ou James Newton Howard. Os solos de ópera escalados com a trilha incidental se tornam imprescindíveis à composição de quase todas as cenas, que muitas vezes emocionam pela melodia.

Incrível também estão as personagens do filme. Mesmo que ninguém do elenco tenha se saído excepcional neste belíssimo filme, cada personagem desta obra, incluindo os mais fracos, são personagens verossímeis, e trabalhados de tal forma que criam um elo com o espectador, que sente a perda a cada destino consumado, como se essas pessoas realmente existissem ou fossem próximas do público. E nisso o elenco está de parabéns.

Com certeza um dos melhores filmes de 2006 no que diz respeito ao conjunto da obra, "Filhos da Esperança" é uma verdadeira lição de vida que não estamos tão longe dessa ficção. Vale a pena ser conferido e reconferido várias vezes.

Leonardo Heffer
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