Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sábado, 02 de dezembro de 2006

Labirinto do Fauno, O

Contando uma fábula totalmente diferente do que já vimos antes, "O Labirinto do Fauno" nos transporta a um mundo onde a fantasia nem sempre é tão bela quanto podemos pensar. Com uma estética impecável e uma história envolvente, nada mais justo do que aplaudir pela qualidade e por demonstrar que o cinema estrangeiro tem cada vez mais competência para fazer coisas boas.

Ambientada durante o regime ditatorial na Espanha dos anos 40, o filme conta a história de Ofélia (Ivana Baquero), uma menina que se muda com a mãe, Carmen (Ariadna Gil), para se juntar ao seu padrasto Vidal (Sergi López), um oficial do Exército Espanhol, em uma velha casa na área rural do norte da Espanha em 1944, após a ascensão do ditador Ernesto Franco. Ainda sofrendo com ataques de grupos rebeldes, Vidal quer capturar membros da resistência que fizeram do campo o seu esconderijo. Sob a rígida vigilância do padrasto, Ofélia refugia-se em um mundo de imaginação e sonho, onde acaba descobrindo um labirinto abandonado, onde conhece criaturas estranhas, e parte em uma jornada que irá fazê-la buscar sua liberdade, mas para isso precisará passar por três testes dados pelo fauno Pan. A menina começa a viver aventuras enquanto precisa ficar perto da sua mãe, que está vivendo uma gravidez de risco.

Primeiro de tudo a ousadia em construir um universo fantástico e o fato de conseguir brincar com um âmbito diferente e rústico da imaginação da platéia foram essenciais para o sucesso de "O Labirinto do Fauno". Quando se pensa em filmes do gênero, vem logo à nossa cabeça a indústria cinematográfica hollywoodiana investindo milhões e milhões de dólares para comercializar o projeto e atrair a população mundial para os cinemas. A diferença é que nesta produção de Guillermo del Toro temos uma demonstração de que o cinema estrangeiro pode construir histórias de tanta qualidade quanto o americano, sem necessitar usar as últimas tecnologias disponibilizadas em seus estúdios para criar efeitos impecáveis ou esbanjar dinheiro no cachê de atores famosos e requisitados. Talvez a sensibilidade com que este filme foi construído, desde o seu roteiro ao processo de pós-produção, tenha sido o ingrediente fundamental para montar um filme envolvente e diferente de quase tudo que já vimos antes. Digo isto porque quando se fala em mundo de fantasia já pensamos em bruxos, magos e feitiços saindo de varinhas mágicas ou sei lá o quê. Em "Labirinto", vemos uma construção do mundo imaginário da protagonista diferente do que os livros contam. Sempre muito obscuro e misterioso, o universo criado entre os seres mágicos que Ofélia vai conhecendo é bastante sombrio, o que mesmo assim não a reprime de conhecê-lo.

É bastante interessante a forma trabalhada no que se refere a como a protagonista vai moldando sua função social no decorrer dos fatos e vai mostrando sua coragem de explorar este mundo esquisito, que parece tão belo, visto que a realidade que Ofélia vive é totalmente desgastante e chata, já que está presa na barra da calça de Vidal, praticamente um Hitler, impiedoso e sem sentimentos, que combate em uma guerra aparentemente inútil, e com sua mãe prestes a ter um bebê, partilhando de todas as complicações da gravidez. A mescla das histórias paralelas foi bem aplicada, apesar de que em alguns momentos os fatos ficavam fragmentados demais, desviando a atenção do espectador somente para uma delas e esquecendo um pouco a outra, mas a sapiência com que del Toro comanda cada tomada é inegável. Desde os simples movimentos de câmera até as transições de uma cena para outra são bem feitas e dão um ar negro de fantasia e mistério do que virá adiante. O diretor e roteirista conseguiu extrair tudo que podia de cada momento do roteiro, sem deixar que o público se perdesse na história e, por mais que tenha errado o timing de algumas cenas e alongado demais o filme, não deixa de ser prazeroso conhecer aquele mundo estranho e inesperado. Cada detalhe do submundo que Ofélia conheceria aparentou ser bem pensado e nada caiu em clichês exagerados ou ficou sem explicação. As metáforas e simbologias usadas no roteiro e as mensagens que vamos guardando até o último momento da película são aproveitáveis e necessárias a pessoas de qualquer idade, sexo ou classe social.

Del Toro reuniu um elenco competente que conseguiu construir uma personalidade ímpar a cada personagem. A pequena Ivana Baquero foi uma surpresa. Nos primeiros momentos do filme nem damos tanta credibilidade ao que ela pode vir a fazer, mas, quando a vemos em ação, percebemos o talento que possui. Sempre conseguindo uma boa expressividade em seus anseios, angústias, medo e satisfação, a menina faz de Ofélia aquela heroína que todos torcem para conseguir seu objetivo, mas que ao mesmo tempo que transmite seu carisma, faz com que o público esteja apto a qualquer peça que o roteiro possa pregar no seu desfecho, pois a maior função que ela tinha era aprender o valor da vida e considerar seus sonhos, por mais absurdos que parecessem, e isso vai acontecendo a cada minuto do filme. Outro destaque é para Maribel Verdú, que constrói em Mercedes uma personalidade enigmática que mostra sua força do meio para o fim do filme. Doug Jones, Sergi Lopéz e Ariadna Gil são outros que rendem bons momentos que inclusive são essenciais para a crença de Ofélia em um mundo diferente do que ela vivia. É inclusive fantástico o caráter que a mocinha demonstra desde jovem, principalmente ao relutar em esquecer a memória do seu falecido pai e aceitar um capitão carrasco como seu padrasto, por mais que estar ali pudesse ser um canto de segurança, vistos aqueles tempos de guerra, o que vai refletir exatamente o contrário. Por mais que Ofélia enfrentasse situações aparentemente perigosas, estar naquele "submundo" era melhor do que ver a realidade do sofrimento da sua mãe e da decorrente guerra.

Regado sempre a uma boa trilha sonora e efeitos visuais tímidos, mas que não decepcionam, del Toro consegue contar uma história sem medo de ser nebuloso ou negativo e isso se reflete muito em como mexe com a emoção do público. Sofrendo com o exagero em tempo que desgasta um pouco o público por ter uma condução pesada, porém necessária, mostra que filmes bons não vêm só da indústria cinematográfica americana. Isso é também até um estímulo a outros países para que invistam em bons roteiros e consigam jogar no mercado internacional, para disseminar a simpatia do público com uma outra linha de cinema. Pecando em poucos aspectos estéticos, como o uso descarado do fundo verde em algumas partes, mas que compensa em outras, "Labirinto" nos apresenta um mundo fantasioso e ousado diferente de muitas fábulas que existem por aí. Sempre tentando criar um universo pálido e sombrio, ao mesmo tempo que cativa, ensina e mostra que ainda é possível construir fantasias boas regadas de um suspense saudável e não cair em erros usuais. Infelizmente seja um filme que terá pouca abertura nacional por não ter conseguido uma repercussão considerável para arrastar o grande público, mas talvez quem o assista saia levemente satisfeito e com a consciência de ter pago um bom ingresso.

Diego Benevides
@DiegoBenevides

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