Cinema com Rapadura

OPINIÃO   domingo, 03 de dezembro de 2006

Um Bom Ano

Ridley Scott sai das grandes produções e não faz feio neste filme simples, sensível e emocionante. Com Russell Crowe mais uma vez esbanjando talento, "Um Bom Ano" é um bom filme cuja história tocante sobressai a falta de atrativos.

É difícil lembrar de Ridley Scott e não associar seu nome a produções grandiosas como o clássico da ficção científica "Blade Runner – O Caçador de Andróides" ou aventuras épicas como "Gladiador". Sua excursão no mundo da comédia se deu no divertido "Os Vigaristas", de 2003, mas mesmo assim não deixava de ser um filme denso. Agora, é estranho ver sua brusca mudança de estilo neste "Um Bom Ano", baseado no livro homônimo de Peter Mayle, um filme simplista que em nada parece um filme de cunhos comerciais (afora a presença do astro Russell Crowe). E o mais interessante é ver o tamanho carinho com que a produção fora tratada, visto que é quase um retrato da vida de Scott e o autor do livro: ambos se conheceram exatamente no mundo da produção de vinhos, na década de 70, em Londres. Enquanto um decidiu virar cineasta, o outro rumou para a literatura. E outro aspecto que liga os dois é a paixão por Provence, região no sul da França. Exatamente em um almoço por ali que surgiu em Mayle a idéia de criar uma história sobre vinhos de garagem. E, bem, não é preciso ser gênio para adivinhar onde Scott e Russell Crowe (a dupla dinâmica de "Gladiador") entram depois nessa história.

Aos 11 anos, Max Skinner (Freddie Highmore) é cuidadosamente educado na arte de saborear vinhos por seu tio Henry (Albert Finney), dono de um vinhedo na França. Adulto, Max (Russell Crowe) torna-se um bem-sucedido homem de negócios em Londres, sem qualquer tempo para degustações mais duradouras. Certo dia, Max recebe a notícia de que Henry morreu, deixando-o como único herdeiro. Prevendo bons negócios, resolve fazer uma rápida viagem para visitar a nova propriedade. Mas, uma vez ali, percebe que não será tão fácil vender o lugar que lhe traz tantas lembranças de infância.

Antes de tudo, "Um Bom Ano" é um filme sobre fluxo de consciência. Sabem essa vertente que tanto Clarice Lispector utiliza em suas obras, em que um simples objeto, um lugar, uma situação é suficiente para todo um filme passar na cabeça de uma pessoa, memórias boas que ficaram presas no passado voltam à tona em questão de instantes? E é simplesmente impossível que nenhum ser vivo nunca tenha vivido uma situação semelhante a de Max Skinner. Todos possuem lembranças, saudades daquela casa de praia no interior que foi vendida há tempos, de um avô ou avó falecida que lhe proporcionou bons momentos; e quando anos depois vemos retratos, objetos que lembram essas recordações, a emoção é grande. E Ridley Scott consegue transmitir através do personagem de Crowe essa sensação de uma maneira deliciosa.

Por sinal, Scott mostra eficiência na condução de um filme simples. Ao transpor as lembranças que o personagem de Crowe vai tendo à medida em que está na casa onde passara uma parte da infância, o diretor acerta em cheio ao mostrar ele criança vivendo exatamente a mesma situação em que se encontra quando adulto. Muito bem feito o momento em que ele vai jogar uma partida de tênis com o caseiro (muito bem vivido por Didier Bourdon), e é mostrado ele indignado por ter perdido uma partida de tênis quando criança, e após vencer quando adulto, dá sozinho pulos de alegria como comemoração. Como diziam as idéias do sociólogo Karl Marx: o meio é que define o homem, e é interessante que a criação do jovem Max Skinner tenha contribuído muito para a moldagem do adulto que ele viria a se tornar. Ainda, muito bem colocado um diálogo dele com sua affair – a bela Marion Cotillard – e ele, relutante em permanecer na casa onde passou a infância, afirma que não está preparado para aquele tipo de ambiente. Ela, de maneira inteligente, responde que é o ambiente que não está preparado para uma pessoa como ele.

O mais interessante é o visual dado por Scott ao longa: tudo se assemelha a uma típica produção européia, fora dos padrões hollywoodianos. Não apenas por ser rodado a maior parte na França, mas por possui toda aquela "áurea" pura, cujo foco é a história e os personagens. E isso o diretor faz questão de mostrar desde os créditos iniciais, em que as letras lembram muito as de filmes franceses dos anos 60. O estilo de narrativa é demasiadamente semelhante de uma produção européia – incluindo o fato de muitas vezes se aprofundar em diálogos excessivos, tornando a projeção um tanto monótona. E é difícil não se sentir confortável com todo aquele visual de cidade tranqüila interiorana, reforçada com a produção de muito vinho (outro aspecto muito visado pela produção, assim como fora em "Sideways – Entre Umas e Outras").

O roteiro adaptado por Marc Klain também teve boas sacadas, apesar de não se esforçar muito em fazer uma história criativa. Não deixa de ser interessante o fato de em meio o processo de "redescoberta" pessoal do personagem de Crowe, o filme ser intercalado com tiradas do típico humor pastelão. Vê-lo dando várias voltas seguidas num mesmo canto no comando de um carro minúsculo semelhante ao de Mr.Bean; um velhinho acabado dormindo enquanto enche a piscina e prestes a cair na mesma… são momentos que trazem uma agradável descontração. As várias metáforas sobre o vinho, comparando sua essência com a vida, também são muito interessantes.

Há de ressaltar que se trata de um filme peculiar, e muitos defeitos podem ser encontrados, dependendo da interpretação de cada um. Além do excesso de diálogos deixar muitas vezes a projeção cansativa, a pouca dinâmica e mudanças no decorrer da trama deixam a película bastante homogênea, o que pode ser fatal para quem está acostumado àquele estilo estadunidense de fazer filme, em que insistem em incluir dramas fortes no meio da história, ou reviravoltas que forcem atitudes forçadas dos personagens. Em "Um Bom Ano", tudo é espontâneo, como um episódio da vida de qualquer um. Interessante? Sim. Mas não deixa de ser cansativo. Um fato que ficou bastante forçado foi o relacionamento de Max com a francesa Fanny, desde o primeiro encontro entre eles que foi algo bastante clichê. Em nenhum momento se vê algo verdadeiro entre eles, e o roteiro ainda faz o favor de piorar a situação ao tentar mostrar um vínculo entre eles desde criança.

Russell Crowe continua impecável. Sou suspeito para falar dele, já que sou seu fã desde "A Prova", de 1991, mas não há como negar que ele encarna o personagem com corpo e alma. Ele transmite com perfeição a imagem do homem durão e que esbanja superioridade no trabalho, mas que esconde um lado sensível ao reencontrar sua infância na casa de seu tio. Impressionante seus trejeitos, sua cara de pateta quando não mais se vê adaptado aos estranhos costumes de uma cidade de interior. Da mesma forma, admirável sua firmeza quando o personagem se mostra decidido a algo. O garoto Freddie Highmore, que já havia demonstrado muito talento em"Em Busca da Terra do Nunca", pareceu captar com exatidão o jeito de Crowe, visto que ambos interpretam o mesmo personagem em épocas diferentes. Albert Finney, como o tio Henry, também está muito bem, apresentando aquele ar sábio de mentor, e muito liberal – a figura idealizada de um pai que todos têm. Ainda assumo que ao ver o personagem, vi Michael Caine como o ator ideal para vivê-lo (quem viu "O Sol de Cada Manhã" sabe o porquê).

"Um Bom Ano" é uma demonstração de que cinema não precisa de grandes atrativos para ter qualidade e que Ridley Scott é um bom diretor independente da grandiosidade da produção. Definitivamente é um filme diferente, e se não fossem os nomes de Scott e Crowe, certamente estrearia em alguma sessão de "Cinema de Arte" e receberia uma atenção mínima. Ainda, há de ressaltar que o filme foi vendido erradamente como uma comédia romântica, pois se trata de um drama de auto descoberta, com algumas pitadas de humor. Tem seus defeitos – dentre eles, o ritmo monótono é o maior -, mas no fim, é impossível não se encantar com o que fora apresentado e passar todo um flashback em nossas cabeças dos bons momentos que ficaram para trás. Memórias, como seria bom se elas sempre tomassem formas concretas, assim como Max Skinner teve a oportunidade.

Thiago Sampaio
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