Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sexta-feira, 08 de dezembro de 2006

Céu de Suely, O

Karim Aïnouz, o aclamado diretor cearense de "Madame Satã", retorna depois de quatro anos trazendo o lindo "O Céu de Suely", um filme sobre voltar para casa. Ganhador do Troféu Redentor de Melhor Filme, Melhor Diretor e Melhor Atriz (no festival do Rio de Janeiro), o longa é esperado com curiosidade pelo apaixonado público da sétima arte.

Inicialmente trabalhado com o nome de "Rifa-me", o filme traz a história de Hermila (interpretada pela linda e explosiva Hermila Guedes, vivendo sua primeira protagonista no cinema), uma moça que retorna de São Paulo à sua cidade natal (Iguatu, Ceará). Trazendo Mateuzinho consigo (seu filho), ela espera a chegada de Mateus (marido) para juntos montarem um pequeno negócio em Iguatu. Só que ele não chega. Abandonada e querendo a qualquer custo sair dali, Hermila tem a absurda idéia de rifar seu próprio corpo em troca do dinheiro que possibilitará sua partida com a criança, passando a apresentar-se como Suely.

A delicada fotografia permite que a cidade seja ela mesma, não tentando transformá-la em algo surreal ou minimizando-a. Walter Carvalho soube aproveitá-la, mostrando que existe um lado simples e belo, e que é justamente essa sutileza que permitirá que o lugar possa ser reconhecido. Não somente nos lugares de locação, como também várias cidades interioranas e simples que podemos encontrar pelo Brasil.

Se em "Madame Satã" assistimos ao conflito interno de um homem (vivido por Lázaro Ramos), aqui Aïnouz nos entrega o conflito dessa mulher, que precisa se encontrar no mundo e encontrar o seu mundo. A dificuldade em ser mãe, dona do próprio nariz e ter 21 anos é uma das abordagens que presenciamos.

É um filme tão real que nos faz sentir que existem muitas moças assim por aí, é totalmente possível. E digo mais: não deve ser a coisa mais difícil do mundo de dar de cara com essa história. A beleza da direção de Karim Aïnouz emociona e quase transtorna. A sensação que se tem é que estamos lá dentro do filme, interagindo com os personagens e buscando respostas tanto quanto eles. A realidade é chocante, mas as coisas funcionam assim. A vontade do diretor de buscar um filme que fosse pura realidade vai ainda além: os próprios atores emprestaram seus nomes aos personagens. Isso assustou os atores um pouco de início, mas eles entenderam a idéia de Aïnouz em deixá-los mais a vontade, de forma que o filme pudesse ganhar um formato mais real.

Hermila Guedes encontra o tom certo ao dar vida à Suely, a jovem apaixonada e sonhadora, que, contraditório ou não, tem um pé na realidade. É difícil deixar sua terra, assim como é difícil ter que voltar. A força dessa jovem faz com que o espectador fique com um nó na garganta: em alguns momentos, rimos, em outros, choramos e, em alguns, fazemos os dois, sem entender exatamente qual sentimento sobrepõe-se. O olhar de Hermila Guedes nos faz parar e nos transportar para um universo possivelmente desconhecido, e algo surreal pode vir a acontecer: até mesmo quem vive numa realidade totalmente diferente pode encontrar em si um pouco do que vê em Hermila.

A constante inquietude da protagonista nos mostra um pouco da inquietude que nós mesmos temos em ser estáticos. A constante vontade de mudança se faz presente. Afinal, quem nunca teve vontade de juntar todas as suas coisas e ir para bem longe recomeçar?!

No mundo em que estamos, não é fácil viver – especialmente para quem tem sonhos. Mas são essas dificuldades e esse medo coletivo de enfrentar o que amedronta que fazem valer a pena. E todo o processo apavora, mas também transforma. Porque isso pode, sim, acontecer: transformar as estruturas não é impossível. Viver é fazer arte diariamente. "O Céu de Suely" é um filme que deve ser visto uma, duas, três vezes. E quantas vezes mais houver oportunidade.

Beatriz Diogo
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