Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sábado, 11 de novembro de 2006

Volver

Com um tom mais comedido do que o usual, Almodóvar retorna aos cinemas em "Volver", um filme repleto de recordações autobiográficas do cineasta. Acima de tudo, neste longa, o diretor reafirma que consegue tratar com sensibilidade o universo feminino e os problemas pertinentes a ele.

Até os que não são profundos conhecedores do trabalho de Almodóvar sabem que o cineasta, melhor do que ninguém, consegue retratar o universo humano e as suas vertentes de maneira esplêndida. Com uma carreira promissora iniciada desde 1974 com alguns curtas-metragens, o diretor foi responsável por projetos de sucesso como "Tudo Sobre Minha Mãe" e "Má Educação" – neste último, tratando mais de personagens masculinos. Aclamado por inúmeros fãs, o cineasta notou que poderia se inspirar em suas próprias recordações para compor um filme tocante, no qual trataria novamente com sensibilidade aflorada o mundo feminino. E dessa idéia surgiu "Volver", um longa que, embora não seja perfeito, contagia e agrada plenamente o público.

Ainda jovem, devido a determinados fatos, Raimunda (Penélope Cruz) separou-se de sua mãe e foi morar com a sua tia Paula (Chus Lampreave), deixando apenas a sua irmã Sole (Lola Dueñas) na residência de seus pais. Raimunda é jovem e atraente, embora já possua uma filha de 14 anos. Paco, o marido da mulher, aparenta ser inútil, mal sendo capaz de manter-se em um emprego, obrigando, assim, Raimunda a possuir vários trabalhos. Já Sole vive sozinha, visto que foi abandonada por seu esposo, e ganha o seu sustento através de um salão de beleza ilegal. Um certo dia, a vida das duas muda quando Sole recebe uma ligação. Esta chamada relatava que a tia Paula, tão querida por Raimunda, havia falecido. As irmãs, então, se vêem na obrigação de irem ao funeral, no entanto, Raimunda está ocupada com outros fatos mal resolvidos… Devido a isso, Sole vai sozinha à aldeia. Lá, escuta boatos à respeito de um provável fantasma de sua mãe. A senhora havia morrido, juntamente com seu esposo e pai das meninas, em um incêndio há anos atrás. E, para o medo e estranhamento de Sole, quando volta à Madri, depara-se com o "fantasma" da sua mãe, que passa a morar com a filha normalmente. A partir daí, situações inusitadas passam a acontecer, e somos apresentados ao mundo conturbado dessas mulheres.

A história em si já apresenta vertentes voltadas à comédia, visto que casos estranhos como esses relatados na sinopse acima podem resultar em bons momentos de descontração. E Almodóvar, embora dote o filme de uma sensibilidade esplêndida, também é capaz de abordar o lado cômico de alguns fatos, tornando, assim, a produção leve e despretensiosa. Por falar em "leve", o cineasta parece estar mais moderado, investindo atualmente em filmes cujo teor não beire tanto ao sexo, como foi o caso de seu longa anterior, "Má Educação", estrelado pelo mexicano Gael García Bernal. Em "Volver", situações que impliquem em relações carnais praticamente não existem, embora seja notado um apreço grande do cineasta em mostrar de maneira eficaz e, mesmo assim, não vulgar as curvas femininas.

Almodóvar consegue desvincular, também, das personagens principais aquela idéia de que as mulheres têm que ser "frágeis". Pelo contrário, as protagonistas são independentes, perseverantes, determinadas, cheias de vida, passam por problemas graves e ainda assim conseguem superá-los – até aqueles que aparentam não ter solução. Com tiradas ótimas e engraçadas, o cineasta apenas reafirma que possui jeito para conduzir bem uma trama, seja ela qual for. Os constantes closes nas feições dos personagens são capazes de dotar as tomadas de maior emoção e proximidade. Novamente, Almodóvar demonstra saber trabalhar bem com as cores vivas, sempre destoando-as das cenas, dotando a película de um quê mais interessante, mais envolvente. Não foi a toa que as "cores de Almodóvar" foram inclusive citadas em uma música da exemplar Adriana Calcanhotto.

Este último trabalho do espanhol traz as diferenças existentes entre uma cidade grande e uma pequena, baseando-se em superstições para explicar o aparecimento de Irene, a mãe de Raimunda e Sole. No entanto, o filme peca um pouco no começo, quando aborda a história das duas irmãs de forma separada. Uma interligação é vista, claro, porém não é suficiente para fazer com que o público se envolva plenamente na trama. Com o decorrer dos fatos, logo após o funeral da tia Paula, embora as personagens principais não passem a contracenar tanto, a história parece que engata e as cenas recebem um maior dinamismo. Todavia erros em "Volver" são considerados pequenos detalhes em frente aos momentos maravilhosos os quais o longa dispõe aos espectadores. O maior feito do projeto, definitivamente, é trazer personagens plausíveis, fazendo com que o público realmente acredite que cada uma dessas mulheres pode encontrar-se mais próxima do que imagina. Acima de tudo, são humanas, cheias de medos, falhas e ambições. No filme, Almodóvar, mesmo tendo retratado de uma maneira mais leve a realidade, escancara, sim, a verdade, sem ter medo de se arriscar. Apenas mostra-se mais comedido, o que não pode ser considerado como uma falha.

Partindo para outro aspecto, as atrizes, definitivamente, dão um show à parte. Sempre mostrei-me resguardada quando o assunto é Penélope Cruz. Na realidade, ainda possuo um certo receio em relação a ela, no entanto, em "Volver", a atriz demonstra que, se for bem dirigida, consegue captar toda a essência de suas personagens e se sair bem. Incrivelmente bela (jamais pensei que fosse dizer isso à respeito de Cruz!), ela dota Raimunda de uma intensidade tremenda, alcançando toda a simpatia do público e tendo uma marcante presença em cena. Lola Dueñas, interpretando Sole, é outra que também consegue se sair bem, embora fique bem aquém do que Cruz disponibilizou ao público, talvez por sua personagem não ser tão envolvente quanto Raimunda. Carmen Maura, por sua vez, dispensa comentários. Em seus 61 anos, a experiente atriz demonstra ser capaz de ainda estar na ativa e atuar como ninguém, fazendo com que seja claro que idade não afasta os atores da indústria cinematográfica. Outra que merece citação é Blanca Portillo, interpretando Agustinha. Embora não receba tanto destaque durante a projeção, a personagem foi captada com fidelidade pela atriz, que demonstrou todo o sofrimento da mulher.

Bem administrado por Almodóvar, "Volver", claramente, é um projeto cuja sensibilidade aflora por todos os lados. Trata, acima de tudo, das relações existentes entre as pessoas, dotando os personagens de um tom mais humano e plausível. Embora esteja mais comedido do que o usual, o cineasta ainda assim não perde o seu talento, aliando situações cômicas à realidade de maneira magistral. Com a ajuda de uma trilha sonora hispânica que conseguiu tornar a trama mais envolvente, o filme traz Penélope Cruz em uma ótima performance, demonstrando, assim, que, se bem administrada, a atriz consegue compor de forma responsável os seus papéis. É um longa que, mesmo possuindo falhas, merece ser visto e revisto.

Andreisa Caminha
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