Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sábado, 11 de novembro de 2006

Volver

Almodóvar não tem jeito e traz mais uma produção imperdível e peculiar, baseada nas suas características de sempre, mas com uma roupagem mais dinâmica e com um humor rebuscado impagável.

O esperado "Volver" chega com mais uma história tipicamente almodovoriana e finalmente justifica todos os burburinhos positivos que estavam surgindo desde que estreou anteriormente em festivais internacionais e tornou-se uma verdadeira referência. Na trama, Raimunda (Penélope Cruz) é uma jovem mãe, trabalhadora e atraente, que tem um marido desempregado e uma filha adolescente, e sempre está fazendo os bicos que pode para manter uma renda boa em casa. Sole (Lola Dueñas), sua irmã mais velha, possui um salão de beleza ilegal e vive sozinha desde que o marido a abandonou para fugir com uma de suas clientes. Abalada pela morte de uma tia querida, Raimunda tenta se livrar do corpo de seu marido, morto por sua filha ao tentar abusar sexualmente dela. Neste meio tempo, Sole viaja sozinha até uma aldeia para o funeral da tia e acaba se deparando com sua mãe que estava morta, mas que voltou por algum motivo misterioso e que pode mudar o destino dessas mulheres.

Almodóvar realmente tem inteligência suficiente e punho para não largar a câmera tão cedo. Por mais que você conheça cada centímetro de suas obras e saiba que em todas seus parâmetros são sempre semelhantes, seus filmes nunca são suficientes. É impressionante a facilidade que o cineasta tem em envolver o espectador na trama e por mais que muitos desfechos já sejam esperados, sempre aparenta naturalidade e casa bem com o que o público precisa ver. Em "Volver", ele faz mais um ensaio da vida humana com uma abordagem dramática, mas sem perder a linha do humor apurado que sempre investe. Construindo um roteiro simplesmente pragmático, simples e eficiente, Almodóvar eleva o longa-metragem a um nível altíssimo de qualidade, já que alcança tanto os admiradores do seu estilo cinematográfico quanto aqueles que não entendem os porquês de muitas saídas que ele trabalha. Desta vez investindo menos em demonstrar a libido dos personagens e usando somente de insinuações, causa até um pouco de estranhamento ver uma película comportadinha, mas não perde nenhuma qualidade com isso; pelo contrário, investe em outra carga dramática onde as tensões sexuais de seus personagens não são necessárias para a história. Até porque não há nada de sexual no enredo em si, pois este foi construído especialmente para demonstrar uma valorização dos princípios e do caráter das pessoas, questionando suas ações e colocando-as em um espectro de familiaridade bastante forte, e nisso a trama vai fluindo de uma forma tão gigantesca, que quando as revelações finais vão gerar o clímax, tais fatos acabam surpreendendo por sua abordagem completamente detalhista e eficaz.

Com traços autobiográficos confessados pelo diretor-roteirista, "Volver" constrói um mundo tão perto, mas ao mesmo tempo tão estranho de se acontecer com a gente. Esse plano de fundo em que a história se passa pode ser encarada também como uma crítica à vida social existente atualmente e usado como cenário exclusivamente para passar suas lições e conclusões finais. A forma como o desfecho é tratado acaba dando uma sensação de falsa tranqüilidade ao espectador, que acaba por colocar a mão na consciência e refletir o que faz de sua vida e o que sua vida faz dele. Extremamente forte e envolvente, Almodóvar investe em planos cada vez mais detalhistas e dá movimento ao mais simples objeto em cena. Seu constante trabalho com as cores quentes e a fotografia exímia se juntam à competência da trilha sonora e fazem de "Volver" um filme praticamente impecável, já que a edição chega a incomodar algumas vezes com seus cortes grosseiros e a montagem acaba sendo em alguns momentos bastante confusa por não conseguir demonstrar com clareza a passagem de tempo das ações, repetindo-as com brevidade e acabando por confundir um pouco, mas o que não traz danos maiores à produção. Os close-ups utilizados nos momentos ideais foram extremamente convenientes ao aproximar o público da emoção máxima que a cena pode passar.

A menina dos olhos do cineasta está de volta e agora como uma verdadeira protagonista. Penélope Cruz conseguiu demonstrar maturidade e faz de Raimunda a sua melhor performance nesses bons anos que figurou filmes fraquinhos ou medianos como "Profissão de Risco" e "Na Companhia do Medo", e em filmes de grande porte como "Vanilla Sky", mas não conseguia uma projeção razoável no mundo cinematográfico. Com "Volver", a moça brincou de ser atriz e se saiu bastante bem. A naturalidade e o investimento de Almodóvar nas expressões sentimentais de Cruz proporcionaram momentos únicos e colocaram o talento dela à mostra. Conseguindo o que poucas atrizes conseguem, Cruz demonstrava todas as suas emoções somente com o olhar e fazia com que o espectador imaginasse um mundo de sensações que aquela personagem estaria sentindo. Desinibida e pretensiosa, a protagonista solta a voz e também demonstra uma facilidade com a música em um dos momentos mais belos da trama, onde todas as armas de Almodóvar começam a ser denunciadas e passamos a entender o viés da história. Carmem Maura é outro xodó almodovariano. Particularmente, considero-a uma das melhores atrizes espanholas e alguém que não perde perde a competência nunca. Bastante expressiva e até com um papel divertido, transforma Irene em um verdadeiro curador das pessoas desesperadas, e que tem seus desesperos ocultos, necessitando colocá-los para fora. Devemos destacar também a atuação de Lola Dueñas como Sole e Blanca Portillo como Agustina, que por mais que seus personagens sejam secundários, esbanjam talento e versatilidade. É característica do Almodóvar conseguir criar vários universos em um só e possibilita do mais simples personagem ao mais complexo mostrar suas razões de estar ali, humanizando mais ainda o que tem em mãos. Outro destaque é para a jovem Yohana Cobo e para a experiente Chus Lampreave, cujas interpretações também estão impecáveis.

Sem perder o ritmo, Almodóvar continua construindo histórias que o público sempre quer ver. Cada vez mais levantando fãs e fazendo do seu nome símbolo de ousadia e talento, o cineasta traz mais um filme imperdível que alcança a todos e entra na lista dos melhores já produzidos por ele. "Volver" é para ser levemente degustado do começo ao fim e ainda deixa com um gosto de quero mais e é mais do que digno estar em no mínimo duas ou três categorias do próximo Oscar, e que fique aqui registrado meus parabéns pelos prêmios que já foram vencidos. Realmente, mais do que merecidos, já que são justificados por sua excelência e beleza. Não o melhor, mas um dos melhores de 2006, sem dúvidas.

Diego Benevides
@DiegoBenevides

Compartilhe

Saiba mais sobre