Cinema com Rapadura

OPINIÃO   quinta-feira, 26 de outubro de 2006

Pequena Miss Sunshine

"Pequena Miss Sunshine" é um filme modestamente encantador, com deliciosas situações absurdas, atuações brilhantes e um final apropriadamente provocativo. Diferentemente de muitos filmes que enfiam uma lição de moral goela abaixo, ele acena a elas, deixando que pensemos nós mesmos à medida em que a trama é tecida.

“Pequena Miss Sunshine” é um daqueles raros filmes que misturam, de forma genial, risadas e choro, absorvendo sua atenção em cada obstáculo que os personagens percorrem em sua árdua jornada pela estrada, e por quê não, pela vida. O escritor Michael Arndt entrelaça os personagens de forma brilhante, com argumentos que mantêm a história movendo sempre em frente.

Por alto, trata-se de um “road movie”, uma comédia sobre a viagem de uma família disfuncional a um concurso de beleza. Os Hoover, uma família de “losers” sem qualquer esperança na vida, deixam de lado a auto-piedade que compartilhavam quando a filha de 7 anos Olive (Abigail Breslin), uma gordinha desajeitada que vivia sonhando em ser modelo, é “des-desqualificada” e é chamada para participar de um concurso de beleza na Califórnia. Como os Hoover moram em Albuquerque e não têm qualquer dinheiro para a viagem, sobem todos em uma Kombi amarela velha e caquenta (a qual é a própria metáfora de sua relação: aos frangalhos e sempre pegando no tranco). No volante, vai o pai Richard (Greg Kinnear, de “Melhor é Impossível”), um orador motivacional fracassado dotado de visão maniqueísta das coisas e um otimismo irritante. Sua esposa, Sherl (Toni Collete, de “O Sexto Sentido”), é demasiadamente a favor de uma sinceridade quase inconveniente. Seu irmão Frank (Steve Carell, de “O Virgem de 40 Anos”), um acadêmico com tendências suicidas especializado em Proust, que acaba de tentar suicídio após terminar o namoro com um de seus alunos. O filho mais velho é Dwayne (Paul Dano, de “O Clube do Imperador”), o adolescente que tem um voto de silêncio em homenagem a Nietzsche, até que entre na Academia da Força Aérea. Completa a família o avô (Alan Arkin, de “Gattaca – Experiência Genética”), um desbocado hedonista recentemente expulso de sua casa de repouso por consumo de heroína.

Co-dirigido pelo estreante nas telonas e diretor de videoclipes Jonathan Dayton e sua esposa Valerie Faris, o filme não é nada do que esperamos de diretores de videoclipes. Ele mistura humor negro, combinando de forma harmônica a um conteúdo emocional sólido e conturbado. Isso mantém o filme divertido, ao mesmo tempo em que se dá um tom profundo e realista.

Apesar dos personagens estereotipados, típicos de um filme “indie”, os atores demonstram uma imensa carga de humanidade em suas atuações, e se agarram a ela a cada piada ou tragédia. Greg Kinnear transmite uma personalidade de americano interiorano saudável, otimista e intelectualmente limitado, tentando viver ao pé da letra todas as imposições da sociedade americana. Enquanto isso, Carell dá um show desde o início, quando aparece no hospital com uma expressão melancólica, após sua tentativa de suicídio. É incrível como Carell lentamente traz seu personagem de volta à vida, à medida que vai ganhando alguns motivos para continuar existindo, e nos presenteia com olhares de sarcasmo à medida que sua personalidade emerge do casco e ele reganha confiança. Um ponto a ser abordado é a brilhante atuação do novato Paul Dano, que passa quase todo o filme calado, mas é um dos que mais diz, com uma expressividade que dá banho em muitos queridinhos de Hollywood.

Inicialmente saí do cinema achando que os diálogos entre Frank e Dwayne haviam sido muito superficiais para um estudioso de Proust e um leitor de Nietzsche. Contudo, agora vejo que o tanto que dialogaram com olhares na maior parte do filme já foi muito mais profundo do que eu esperava ouvir nas falas.

Se ainda não se contentou, o ingresso se paga no final. Em meio a todos os problemas da família, e depois de acontecimentos mirabolantes e absurdos, o espectador se depara com um enorme contraste na noção de “normalidade”. Diante de uma bizarrice sem tamanhos e de um culto despropositado à aparência que encontram no concurso de Pequena Miss Sunshine, toda a família acaba por compreender que aquela “realidade” que compartilhavam juntos não era tão estranha quando antes lhe parecia. Esse ponto beira a epifania, principalmente quando Richard enxerga uma caricatura de seus absurdos nas atitudes dessas pessoas, e finalmente se desapega das noções impostas.

A falta de um aprofundamento filosófico ou moral maior pode ser interpretada como uma confiança que os diretores depositaram nos espectadores. A confiança de que eles conseguirão compreender o filme e captar a mensagem. E isso é uma coisa maravilhosa. Chegamos até a nos sentir importantes quando saímos do cinema, pois acabamos de ver um dos poucos filmes de hoje em dia que não são feitos para idiotas.

Leonardo Paixão
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