Cinema com Rapadura

OPINIÃO   quarta-feira, 11 de maio de 2005

Anjo Exterminador, O

"A história do cinema situa Buñuel como um autor e será ele um dos poucos cineastas que, no futuro, terão citação destacada entre os pensadores de nossa época. Um pensamento, quase um sistema que, não tendo sido racionalmente criado, deixa aos críticos um tema fecundo, de onde se pode extrair uma ética-estética. Raros, mesmo entre os autores cinematográficos de hoje, os que podem ser considerados, além de poetas, pensadores.”

"A moral burguesa é, para mim, uma imoralidade contra a qual há de se lutar; esta moral que se baseia em nossas instituições sociais mais injustas como o são a religião, a pátria, a família e a cultura, em suma, o que se denomina os pilares da sociedade."

Luis Buñuel

Se o dia dedicado ao espaço “É o Noooovo!!!” nos permite estarmos tratando de grandes clássicos do cinema, não poderíamos hoje deixar de debulhar mais a respeito do grande mestre do cinema espanhol, Luis Buñuel. Difícil, no entanto, é escolher, dentre suas magníficas obras de arte, uma em especial para estarmos comentando nesse momento. Eterna indecisão que merece um complemento numa sessão especial só dedicada às suas obras. Mas enquanto esse dia não chega, passemos então a análise de um de seus filmes que, ao meu ver, ofusca os demais: O Anjo Exterminador!

Como se sabe, Luis Buñuel é notadamente conhecido como o “mestre do surrealismo do cinema”. No entanto, ressalto que olhar esse grande cineasta sobre unicamente este prisma é problemático, porque é como fechar as portas para um imenso universo repleto de significação, o que pode ser extraído em cada um de seus filmes

Sem dúvida alguma, Buñuel foi sim um dos mais consagrados e polêmicos cineastas, não só da Espanha, mas de todo o Mundo. Quem aqui não se lembra das chocantes cenas de “Um Cão Andaluz” (1928), onde Buñuel chocava o público com inserção nada digestivas de cenas inusitadas, como aquela em que um olho era cortado por uma navalha?!?!?! Pois é, tudo surgiu de uma conversa de Buñuel com o pintor Salvador Dalí, na qual ambos discutiam sobre seus sonhos bizarros. Duramente atacado pela crítica da época, Buñuel conseguiu o que realmente queria: chocar o público, em especial, os burgueses, que vem a ser um dos seus alvos prediletos de ataque.

Além do duro ataque aos burgueses, Buñuel também combateu, com seus filmes, questões como a religião e o sexo, tudo sempre acompanhado de um certo toque de surrealismo. De uma forma ou de outra, Buñuel sabia enxergar além de muitos cineastas. Tomou seus filmes como uma excelente oportunidade de alfinetar, através de seu seus personagens, a luxúria doentia, as manias burguesas e o fanatismo religioso, em especial, o da Igreja Católica.

Em relação ao filme O Anjo Exterminador (El Angel Exterminador, 1962), o que vemos saltar os olhos é justamente a aguçada crítica sobre a sociedade burguesa. Baseado numa história do cineasta com Luis Alcoriza, intitulada “Los Naufragos de La Calle de La Providencia”, este filme encerrou a fase mexicana de Buñuel. Com um roteiro criativo, Buñuel nos apresenta o fatídico dia em que, depois de uma festa de gala numa belíssima mansão, os ricos convidados, por uma razão inexplicável, acabam tomados por uma sensação de abulia e desconforto, não conseguindo, assim, deixar o local. Com o passar dos dias, das horas e das semanas, aquelas pessoas vão sendo tomadas por uma animosidade surreal, o que acaba propiciando o desmascaramento de suas pseudo-identidades. Aos poucos, a falsidade vai se revelando como uma navalha, deixando-os assustados, tal qual animais levados pelo impulso da sobrevivência de suas realidades inventadas.

A narrativa é bem simples, mas bastante original. Buñuel não tem dó de retratar a burguesia como a sociedade mais vil, mais cruel, mais desumana e imoral. E isso tudo pode ser sentido no filme desde o relacionamento dos patrões com os empregados, além da hipocrisia estampada nos sorrisos dos ricaços, o adultério, a vaidade, enfim… é um jogo de cartas que não tem pressa de terminar. A crueldade é tão absurda, que só para ilustrar com um exemplo, retomo aqui as palavras de uma das convidadas da festa, que diz, dentre outras palavras, a seguinte frase: “sofri muito com a morte de um príncipe amigo meu, mas não me sinto sensibilizada ao ver a morte de dezenas de pessoas baixas [pobres] esmagadas num desastre de trem. Essas pessoas baixas não devem sentir a dor como nós [elite] sentimos”. (?!?!?!?!?!) É, meu amigo, pobre é uma raça lastimável pra essa fidedigna burguesa. Nada que não possa ser substituível, ao contrário do Príncipe, único pela sua natureza (se é que vocês me entendem). A ironia não pára por aí. O falso moralismo burguês cega o anfitrião da festa, que, a todo momento, está ali lamentando o comportamento promíscuo dos convidados, mas não percebe que seu amigo está ali seduzindo sua esposa à sua frente.

Aí vocês param e me perguntam: “Carol, e esse anjo exterminador??? O que significa?” Só vendo o filme mesmo pra tentar compreender. Mas diria que ele age como um anjo pornográfico, carrasco, dominando suas “vítimas” tornando-as escravas de seus desejos. Buñuel é o presídio da culpa, onde o prisioneiro cumpre pena perpétua. Os burgueses são os prisioneiros, mas de suas próprias vergonhas, lentamente desmascaradas com o passar do tempo.
“Meu maior sonho era fazer um filme onde todos os personagens se movimentassem feito insetos”, dizia Buñuel em sua autobiografia. O Anjo Exterminador é o que mais se aproxima desse desejo. Todo aquele caos alógico dos burgueses dão a sensação de que eles mesmo sejam verdadeiros insetos. No filme, podemos ver senhores que passam o tempo todo se cumprimentando; senhora que guarda em sua bolsa dois pés de galinha; uma outra senhora que passa o tempo todo penteando uma pequena parte de seus cabelos; um jovem efeminado que passa o tempo todo reclamando; enfim… é sobre isso que trata o filme.

De fato, é em O Anjo Exterminador, que vemos com mais clareza um projeto meticulosamente construído para externar as preocupações do diretor em relação à Igreja, à luxúria e à burguesia. Atrevo-me a dizer que, de todos os filmes de Buñuel, é nessa obra que o projeto panfletário do diretor se evidencia. Dessa forma, recomendo uma atenção redobrada a esse filme, para que você, leitor, não deixe de captar todas as preocupações de Buñuel com a sociedade, da qual ele nunca se excluiu.

Bom… esse filme é muito rico em análise. Poderia tecer considerações em laudas e laudas de papéis. Mas que fique o espaço aberto para comentários. E que venha logo um especial só dedicado a esse cineasta, que marcou, pra sempre, a história da cinematografia mundial. Pois, como dizia Glauber Rocha (e aqui finalizo a presente crítica), “A história do cinema situa Buñuel como um autor e será ele um dos poucos cineastas que, no futuro, terão citação destacada entre os pensadores de nossa época. Um pensamento, quase um sistema que, não tendo sido racionalmente criado, deixa aos críticos um tema fecundo, de onde se pode extrair uma ética-estética. Raros, mesmo entre os autores cinematográficos de hoje, os que podem ser considerados, além de poetas, pensadores.”

Cinema com Rapadura Team
@rapadura

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