Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sábado, 02 de julho de 2005

Casa de Areia

Contado de forma lenta, silenciosa, mas extremamente interessante, o filme é um dos melhores longas brasileiros lançados durante muito tempo. É cinema para quem gosta realmente de cinema.

“Tem uma frase do Nietzsche que define muito o sentimento do filme: ame o seu destino.” Andrucha Waddington, em uma entrevista acerca de seu novo longa: “Casa de Areia”. Verdadeiramente esta é a frase que sintetiza o filme. Assistam-no e saberão o porquê.

Definitivamente, “Casa de Areia” é um dos melhores filmes brasileiros. Não apenas porque conta com duas atrizes competentíssimas no elenco, mas porque tem um roteiro que beira o genial; uma fotografia que enche os olhos de qualquer espectador que tenha coração; uma direção primorosíssima e um elenco secundário que em momento algum deixa a peteca cair. E olhe que a peteca parece ser muito pesada, afinal, participar de uma trama dessas é, no mínimo, um grande desafio e, ao mesmo tempo, uma grande honra, pois é participar de um marco no Cinema Brasileiro em si.

O filme se inicia com um plano aberto de uma duna que, aos poucos, é tomada por uma caravana de pessoas. A legenda denuncia que estamos no ano de 1910, e que o local é os Lençóis Maranhenses. Durante esta cena somos apresentados a família Sá. Vasco (Ruy Guerra, diretor do fraquíssimo “Estorvo”) é o patriarca que, na intenção de ter uma vida melhor, comprou uma casa neste lugar inóspito; Áurea é sua esposa, que, grávida, não aceita ficar neste lugar e D. Maria, mãe de Áurea, concorda com sua filha de que aquele local não é o mais apropriado para se construir uma família.

Então, depois de aproximadamente dez minutos de filme, há o primeiro diálogo do filme:

Áurea: Vasco, vamos embora daqui.
Vasco: Não tem mais volta.

Então, acontecem alguns fatos que fazem com que Áurea e D. Maria vão ficando neste lugar, e, aos poucos se acostumando com o mesmo.

Acho que, pelo que já falei sobre o filme, deu para perceber que este não é um filme comum, e sim, um profundo estudo de como as pessoas tem a capacidade de se adaptar e como nós temos que aceitar o que o destino nos impõe. Tudo isso mostrado de forma lírica e bela por Andrucha.

Pela primeira vez na história da dramaturgia brasileira, as duas Fernandas contracenam juntas. E, como era de se esperar, o resultado saiu magnífico. A química entre as duas é impressionante, chegando a falarem coisas lindas, uma para a outra, através apenas de um olhar. Fernanda Montenegro, como sempre soberba, nos confirma que ela é a grande rainha quado o assunto é atrizes brasileiras, e sua filha, Fernanda Torres, mostra que está seguindo o rumo de sua mãe. É impossível para qualquer um imaginar Fernanda Torres interpretando Vani, no extinto seriado, ou no filme, “Os Normais”. Isso sem contar que as duas trocam de papeis durante a projeção. No inicio, Fernanda Montenegro interpreta D. Maria, mãe de Áurea, vivida na tela por Fernanda Torres. Sem avisar para o expectador (opção corajosa e que demonstrou muita maturidade por parte de Andrucha) o longa dá um salto no tempo, e vemos Maria, a filha de Áurea, descendo uma duna. Minutos depois, o longa dá outro salto no tempo, onde agora Áurea é interpretada por Fernanda Montenegro e Maria, por Fernanda Torres (o destino de D. Maria não convém contar, mas, limito-me a dizer que é um dos momentos mais lindos, onde a interpretação de Fernanda Torres é de deixar qualquer um boquiaberto, onde tristeza e alegria, choro e riso, se fundem de forma sublime).

O elenco coadjuvante é outra coisa maravilhosa que adorna o filme. Seu Jorge, que faz o papel de Massu, nos impõe toda sua presença causada pelo seu porte. Seus olhares são característicos de uma pessoa sofrida, mas que tem muito carinho guardado em seu peito. Um homem que os infortúnios da vida não deram tréguas, mas que vê, na figura de Áurea, uma esperança para mudá-la. Outro ator que também surge em cena e que causa uma enorme empatia com o público é o sempre competente Emiliano Queiroz, que vive Chico do Sal, um mercador que se torna a única esperança de Áurea de sair daquele lugar.

Outro ponto importante que o longa fala é a teoria de relatividade, toscamente explicada por Luiz (vivido, em um primeiro momento por Enrique Diaz, e em outro por Stênio Garcia), um soldado com quem Áurea tem um breve início de caso. Em uma primeira olhada, ela parece desconexa de todo o longa, mas, quando o último diálogo chega ao fim, vemos que tudo foi uma `preparação de terreno` da parte de Elena Soárez, a roteirista do filme, para finalmente fechar a idéia principal da saga de Áurea: o tempo modifica as pessoas.

A fotografia é algo que também merece destaque. Mesclando momentos em que as dunas são retratadas como uma verdadeira prisão e outros em que mostra que existem muitos horizontes e caminhos a se seguir, bastando apenas ter coragem de tentar, ela se configura como uma das coisas mais bonitas que se vê na telona. Isso sem contar a iluminação que é algo que também é belamente utilizada (vide a cena final, onde há uma conversa entre Áurea e Maria)

Assim como as grandes obras das artes, “Casa de Areia” possibilita muitas interpretações e causa em cada pessoa que se propõe a vivê-la intensamente, uma experiência única e pessoal. Entenda como um conselho de amigo: apesar de aparentar ser maçante, o pesadelo poético e, porque não dizer, kafkiano vivido pelo trio de mulheres é um excelente filme, onde o silencio impera, chegando quase a se tornar um personagem e tudo que está em cena, todas as tomadas e todos os diálogos (poucos, admito) foram feitos para ser apreciado segundo a segundo, frame por frame, palavra por palavra, e assim, podermos, pifiamente, adentrar no universo vivido por Áurea, Maria e D. Maria. Espero que com este filme as pessoas que pensam que brasileiros não sabem fazer cinema se calem, afinal, “Casa de Areia” é cinema na melhor concepção da palavra!

Cinema com Rapadura Team
@rapadura

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