Cinema com Rapadura

OPINIÃO   segunda-feira, 28 de março de 2005

De Corpo e Alma

Se por um lado o filme perde na construção da narrativa, por outro ganha no enfoque aos espetáculos de dança.

Se o espectador for ao cinema com o anseio em desfrutar de uma boa história, pode provavelmente se decepcionar com De Corpo e Alma, de Robert Altman. O resultado deixa muito a desejar, porque não há narrativa. A princípio pouco entusiasmado com o argumento proposto pela atriz Neve Campbell, o diretor norte-americano acabou sendo convencido pela dita cuja a aceitar o projeto. Eis o maior equívoco de Altman: ter transposto às telas um roteiro sem consistência alguma. A maioria das cenas vão do nada a lugar nenhum. Enfraquecido o roteiro, o conjunto vai por água abaixo, tornando o filme chato, entediante, que quase não acaba. A apatia chega a ser tamanha que desvanece qualquer vestígio da ironia ácida de filmes anteriores de Altman, como O Jogador ou Assassinato em Gosford Park.

De Corpo e Alma está mais para documentário do que propriamente uma ficção. Interessa aqui fazer um amplo painel ou tessitura dos bastidores de uma companhia de dança: a Joffrey Ballet, de Chicago. A câmera precisa de Altman circula pelos espaços onde bailarinos falam ao mesmo tempo e a ação acaba desembocando numa esquizofrenia geral, porque os personagens são esvaziados de sentido. As peculiaridades dos acontecimentos florescem, no entanto são subitamente ignoradas pela frieza como os personagens vivenciam no cotidiano. Por exemplo, fica evidente que a maioria dos bailarinos tem um trabalho extra, como a protagonista Ry (Neve Campbell) que é garçonete nas horas vagas. O motivo (a baixa remuneração do balé) nem chega a ser explicitado. Além disso, Ry mora ao lado de uma linha de trem super barulhenta. Ela reclama? Não. Pelo contrário, tal fato é visto en passant. Como se tudo fosse muito comum, naturalista e, conseqüentemente, fake. O que predomina são instantâneos da vida, pequenos lampejos destituídos da mínima força dramática. Dentre os fragmentos, há uma exceção que se diferencia pelo tom singelo: a paquera entre Ry e Josh (James Franco), durante um jogo de sinuca num bar. A música My Sweet Valentine (na voz de Elvis Costello) substitui sedutoramente a ausência de diálogos do casal.

Vale destacar que 95% do elenco é formado por bailarinos profissionais da própria Joffrey Ballet que utilizam seus nomes reais. Os únicos atores são Neve Campbell, James Franco e Malcolm McDowell (que de tão envelhecido distancia-se anos-luz do memorável Alex, de Laranja Mecânica). Bailarina desde os seis anos, Campbell chegou a estudar na National School of Ballet do Canadá, mas acabou trocando a carreira de dançarina pela de atriz. De Corpo e Alma era um sonho de longa data da atriz que também desempenhou a função de produtora do filme. Para voltar em forma aos palcos da dança, Campbell passou por oito meses de treinamento ao lado dos bailarinos da companhia. Já McDowell interpreta o diretor-artístico da Joffrey Ballet, Sr. A (inspirado no verdadeiro manda-chuva da companhia, Gerald Alpino).

Se por um lado o filme perde na construção da narrativa, por outro ganha no enfoque aos espetáculos de dança. Altman parece ficar fascinado com a estética proporcionada pela plasticidade dos corpos dos bailarinos durante as coreografias. São esboços de cores e formas capturadas pela fotografia de Andrew Dunn e orquestradas pela montagem competente de Gerladine Peroni. A beleza das cenas de dança conquistam o olhar do espectador. O balé romântico de Ry com um dançarino durante uma tempestade proporciona o melhor momento do filme. São fragmentos tecnicamente memoráveis, mas que por si só não dão conta do universo cambiante da dança. Afinal, há muita vida por trás dos holofotes.

Cinema com Rapadura Team
@rapadura

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