Cinema com Rapadura

OPINIÃO   quarta-feira, 04 de maio de 2005

Dois Olhos Satânicos

Em Dois Olhos Satânicos, vemos mais uma vez reunidos os grandes mestres do terror Dario Argento e George Romero, desde o inesquecível e precursor filme "A Noite dos Mortos Vivos".

Edgar Allan Poe, como o grande mestre que foi ainda me faz espalhar aos quatro cantos da Terra a sua genialidade. ERA UM AUTOR FANTÁSTICO!!! FANSTÁTICO!!! Não só era, como continua sendo. E fantástico aqui não se resume somente a um simples elogio. Enquadra-se também a um gênero literário, a meu ver, criado pelo próprio grande mestre do horror. O gênero se chama, nada mais, nada menos, que “fantástico”!!! Se não entende o que estou falando, passe a observar na leitura dos contos e poemas de Edgar Allan Poe a maneira de como aquela atmosfera realista vai se contrastando com algo extraordinário ou sobrenatural que, trepidantemente, vai surgindo no conto. Escute então todos aqueles misteriosos ruídos que vão cercando o personagem e seu espaço, até o momento em que ele vai alterando o temperamento de normal a neurótico, por estar, coitado, isolado do mundo pelo simples fatos de não conseguir mais acordar de seus devaneios, de suas fantasias… É mais ou menos por aí que se justifica a terminologia do gênero “fantástico”.

A catalepsia, o magnetismo, a histeria e, sobretudo, a ilogicidade, vai lentamente fazendo o corpo do leitor vibrar, chacoalhar. O coração dispara feito um sopro. A temperatura vai diminuindo em proporção ao medo invocado, até o momento em que o curioso leitor interrompe tudo para formular as seguintes perguntas: "será que isso está acontecendo mesmo?" ou "não seria tudo um sonho?" (…) Que horror!!! Que horror!!! Que horror!!! Você provavelmente exclamaria isso infinitas vezes. Se todo aquele universo sinistro retratado nas historias de Poe é um absurdo, uma alucinação, eu não saberia responder. Acredito que as interrogações se interrompem no nó na garganta e na mente alucinada, até fazer o efeito de se querer extravasar todas aquelas emoções em balbucios, ou através de uma conversa com um amigo, ou através de um pedaço de papel e uma caneta BIC, ou através da um teclado maltratado pelo espancamento constante do digitador, ou, até mesmo, através de um outro estranho e caótico retrato, agora em movimento, sob a ótica do cineasta.

O apelo cinematográfico do horror gótico de Poe repousa sobre uma elaborada técnica que obedece a uma profunda coesão de tom, estrutura e movimento. As ambientações dão calafrios. Tudo ali é muito brumoso, escuro, repleto de elementos que sugerem morte e fatalidade. Em contraste com espaço, têm-se os personagens, tido por muitos estudiosos como extensões do próprio autor: homens neuróticos, de mente inquietante, de olhar agudo e implacável. As donzelas são mórbidas, pálidas, doentes de males muito estranhos. Tudo isso vai gerando um maravilhoso cenário para qualquer diretor de cinema. O que diria então os maiores mestres do terror cinematográfico, tais como um Dario Argento e um George Romero? Não, eles não poderiam emudecer diante tanto talento. Tinham que recriar tudo aquilo em forma de imagem em movimento, agora, enriquecidos com seus olhares nada nada discretos.

Em Dois Olhos Satânicos (Due Occhi Diabolici – 1990), vemos mais uma vez reunidos os grandes mestres do terror Dario Argento e George Romero, desde o inesquecível e precursor filme A Noite dos Mortos Vivos. Quem iniciou o projeto foi Argento, que pretendia reunir, além de Romero, cineastas como John Carpenter e Wes Craven para juntos fazerem uma releituras dos contos "O Gato Preto" e "O Caso do Sr. Valdemar", ambos de Poe. Como não foi possível, Argento teve que se contentar (até parece uma grande lástima) com a ajuda do amigo Romero, que prontamente aceitou o desafio. Assim, os grandes mestres do horror puderam dar asas a imaginação e criar, de maneira notável, uma película de alto nível, repartida em dois blocos que tanto se contrastam, como se complementam.

O episódio de Romero, O Caso do Sr. Valdemar, inicia a experiência. George Romero, considerado o inventor do terror moderno por ter inventado um gênero chamado gore (algo que se aproxima a sangue e tripas, se é que me entendem), foi, antes de tudo, um pioneiro que levou o “realismo fantástico” a níveis de violência absurda (mas não gratuita). Daí você imagina o nível em que o cara vai retratar a história. “Muito louco”, você me diria. E foi mesmo. Tentou recriar a história sob a tentação de fazer uma mistura entre o suspense hitchcockiano e o drama noir. Quem diria que o grande criador dos zumbis sanguinários acabasse se perdendo na direção de um filme pelo pecado do exagero?!!

Ao bem da verdade, o conto foi completamente alterado pelo diretor George Romero. Ao trazer para a contemporaneidade da geração 90 o drama imaginado por Poe – a de um homem que morre quando estava sob hipnose, masque é completamente incapacitado de deixar o mundo dos vivos – Romero, revestiu-a com uma trama clássica de adultério e cobiça. No filme, observamos o moribundo (e milionário) Ernest Valdemar (Bingo O’Malley), prestes a falecer, enquanto é submetido por uma sessão de hipnose pelo médico Robert Hoffman (Ramy Zada), amante de sua mulher Jessica (Adrienne Barbeau), que não passa de um grande golpe jurídico para que o doente, fora de si, assine uns papéis que garanta à sua esposa a herança de toda sua fortuna. Para o desespero dos vilões, o Valdemar acaba morrendo antes de assinar a documentação, o que, por linhas tortas, acaba minimizando as suspeitas de assassinato. Mas aqui você leitor, pára, e me esculhamba: “P****, Carol! Você entregou o filme”. Eu solto uma sonora gargalhada e respondo um sonoro NÃO!!! Não entreguei o filme. A origem de todo o horror está justamente na solução em que os dois amantes tentarão dar a esse todo esse contratempo. Pra sua felicidade cinematográfica, eu deixo a tampa do mistério entreaberta, com uma grande placa com o inscrito “não adequados para pessoas sensíveis”, só pra sacanear! (RISOS). A tampa fica entreaberta sim, só pra, mais uma vez, lembrar que o homem que supostamente era pra ter morrido, continua vagueando entre o mundo dos vivos e dos mortos.

Aí você me interrompe de novo pra dizer, “mas Carol, até aí tudo bem… é o grande mestre dos zumbis de A Noite dos Mortos Vivos (1968) que está por trás das câmeras”. Eu sei, amiguinho. Mas não me convence. Talvez porque eu esperava um pouco mais, justamente pelo fato de ser Romero um dos grandes mestres do gênero terror. Pode ser que seja diferente pra você. É isso que é bacana no cinema, na literatura, nas artes plásticas, etc. As possibilidades de várias interpretações é o que enriquece uma obra, seja ela de arte, ou não.

Agora parto pra falar naquilo que mais prendeu a minha respiração em todo filme: a versão de Dario Argento para o famoso conto “O Gato Preto”. Tal como Romero, Argento contextualizou a história macabra de Poe para o cenário urbano da década de 90. Argento também fez algumas modificações na história, mas nem por isso deixou de ter feito um excelente trabalho. E falo isso não é toa, não. Se você é fã da obra de Poe, poderá observar facilmente diversas referências feitas pelo mestre italiano Argento ao grande escritor de “O Gato Preto”. Ficou tão bom que Romero não poupou elogios, chamando o trabalho de Dario “um maravilhoso poema de amor a Poe”. Não foi por menos, posso lhe garantir isso.

Uma das novidades feitas ao conto está inserção do protagonista Usher (uma referência ao conto "A Queda da Casa de Usher", também de Poe) no lugar do narrador sem nome da história inicial. No filme, o protagonista é um fotógrafo sensacionalista, especializado em retratar cadáveres mutilados. O horror de seu trabalho é tão grande que acaba lhe propiciando um certo desequilíbrio moral e psíquico. A esse universo perturbador, Argento vai inserindo sua maneira peculiar de dirigir um filme. Criativo, ele vai ousando atribuir um movimento contorcido à câmera, como se tivesse percorrendo um espaço labiríntico e nauseante, bem próximo dos tormentos psicológicos do personagem. Mas sua criatividade extravasa mesmo quando começamos a perceber as diversas referências feitas à obra de Poe. Senão, vejamos: além do nome Usher, temos também o nome da namorada (Madeleine Potter), que é Annabel, o que remete ao poema Annabel Lee. Não disse também as primeiras cenas do filme me lembraram bastante o conto O Poço e o Pêndulo. E se queres saber quais as outras referências, recomendo a ler a obra de Poe para identificar as passagens no filme. Eu é que não vou ficar citando pra vocês depois ficarem me criticando!

Se estou sendo perversa? Talvez… Mas é uma perversidade necessária. Pelo menos me livro com uma passagem do conto O Gato Preto: “… creio que a perversidade é um dos impulsos primitivos do coração humano – uma das faculdades, ou sentimentos primários, que dirigem o caráter do homem”. Pelo menos, até agora, não tive que matar ninguém pra justificar isso. Até agora… Ainda estou nos livros (RISOS).

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Cinema com Rapadura Team
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