Cinema com Rapadura

OPINIÃO   segunda-feira, 11 de abril de 2005

Donnie Darko

“Donnie Darko” é um filme bastante diferente dos quais estamos acostumados a ver nos circuitos abertos dos principais cinemas da cidade ou nas seções de destaque das melhores locadoras de vídeo e DVD. Com sua temática complexa e um roteiro repleto de filosofias, definitivamente, não é um filme para qualquer um ver e gostar.

Nossa sociedade contemporânea está acostumada a seguir um caminho homogêneo, marcado por filmes que contém começo, meio e fim bem definidos, exigindo de nossas cabeças apenas o mínimo necessário para prender a atenção durante o seu tempo de duração. Não é de se admirar que filmes diferentes como o apenas correto “Efeito Borboleta” e o excelente “Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças” tenham causado tanta badalação entre o público. Talvez por seguir o caminho totalmente contrário ao que o público está acostumado, ”Donnie Darko” não foi bem nas bilheterias mundiais (sendo inclusive lançado direto em DVD no Brasil), mas, aos poucos, foi adquirindo um número cada vez maior de fãs e atingindo o status de um filme “cult”.

Sua estória de início até parece simples: Donnie Darko (Jake Gyllenhaal) é um jovem excêntrico que possui seguidas crises de sonambulismo e um comportamento que lhe rende um tratamento psiquiátrico repleto de remédios e terapia. Donnie tem a visão de um coelho monstruoso chamado Frank, que apenas ele consegue ver. Um dia, Frank o atrai para fora de casa e lhe diz que o mundo acabará dentro de vinte e oito dias, seis horas, quarenta e dois minutos e doze segundos. Ao acordar, na manhã seguinte, em pleno campo de golfe, Donnie descobre que uma turbina de algum avião ainda não-identificado caiu sobre o seu quarto e o teria matado, caso não tivesse tido um ataque de sonambulismo na noite passada, quando ficou dormindo pela cidade. Sob a influência de seu amigo imaginário, Donnie começa a realizar atos de violência contra a sociedade, que constituem uma espiral de proporções cada vez maiores. É quando ele começa então a se perguntar qual o fundo de verdade na previsão do fim do mundo.

“Donnie Darko” acaba se mostrando um filme tão complexo que se torna impossível descrevê-lo, devido à enorme riqueza de detalhes e vertentes abordadas de uma maneira genial em cada ação ou diálogo entre os personagens. O roteiro do estreante Richard Kelly (também diretor do filme) é o ponto alto do filme, abordando temas diversos como as críticas sociais, principalmente ao famoso “American Way Of Life” e seu efeito sobre a sociedade, a hipocrisia humana, os questionamentos da religiosidade, o destino, o amor, a morte, a Física envolvida na temática da viagem no tempo, além, é claro, do questionamento psicológico do personagem-título e a sua total falta de adaptação aos falsos valores morais a que lhe são impostos. Não existe uma marca explícita dizendo onde um assunto acaba e onde outro começa. Tudo se junta de uma forma sensacional.

É impressionante a forma como o roteiro mostra como algumas idéias e valores são impostos às nossas vidas, e a sociedade acaba por engolir naturalmente tudo o que é dito e vendido pelos outros, de forma que nós, humanos, pareçamos meros zumbis. Em uma ótima cena do filme, em meio a uma palestra, Donnie pega o microfone e questiona a honestidade de um homem (interpretado pelo eterno fantasma de “Ghost”, Patrick Swayze) que prega que tudo de ruim que acontece em nossas vidas é culpa do medo. Não estaria Donnie, de certa forma, correto ao questionar a honestidade dessa informação duvidosa?
Já em outra cena, Donnie discute com sua professora ao ser chamado por ela ao quadro para marcar um ponto, representando uma determinada situação em um desenho da linha da vida demarcada por amor e medo. Será mesmo que algo tão complexo como a vida pode ser representada apenas por dois extremos (amor e medo)? Pode até não ser correto, mas, mesmo assim, idéias como essas são impostas e vendidas através de livros, anúncios, comerciais, fazendo com que todo ser acredite em tudo. É nesse aspecto que Donnie se torna especial em meio à sociedade: por enxergar toda a realidade falsa que está ao seu redor.

Ao decorrer do filme, podemos perceber que nenhuma cena e nenhum diálogo são usados gratuitamente, pois para tudo existe um fundamento, apesar deste nunca ser revelado. Por exemplo: todos os atos de vandalismo realizados por Donnie possuem uma razão exata para eles serem realizados. Seria essa razão o destino? Talvez. Tudo dependerá totalmente da interpretação de quem assiste. "Donnie Darko" é um filme que, assim como na vida, as respostas para as questões diversas não vêm de bandeja até nós. Nós mesmos temos que buscá-las.

E não poderia de forma nenhuma deixar de falar sobre Frank, o assustador coelho gigante que guia as inexplicáveis atitudes de Donnie. O misterioso personagem mexe com a curiosidade do expectador, gerando dúvidas sobre sua real natureza. Seria ele apenas uma representação do subconsciente de cada um de nós, que nos faz, às vezes, agirmos de forma diferente; ou seria algo muito além da loucura da cabeça de Donnie, pelo fato de ter sido capaz de prever a data e a hora exata do apocalipse? E afinal, porque a misteriosa “Vovó Morte” parece esperar eternamente por cartas que nunca chegam? Essas são apenas algumas perguntas pertinentes que ficam martelando durante o filme, e não são facilitadas para quem espera por uma recompensa no final. “Donnie Darko” é um filme que parece apenas começar quando acaba, o que, de certa forma, não deixa de ser verdade, pois o filme se inicia novamente dentro de nossas cabeças, de onde, com certeza, não sairá por um bom tempo. É impossível não ficar pensando sobre o filme por horas (talvez até dias) após seu término, e é aí onde mora o seu maior mérito. O longa causa um impacto diferente em cada pessoa que assiste, como se cada um tivesse assistido a um filme diferente, devido às milhares de versões possíveis para ele, dentro da imaginação humana.

A trilha sonora, repleta de clássicos dos anos oitenta, é perfeita, e a interação entre as músicas e o filme não só dão pistas sobre o que está acontecendo, como contribuem para a variação de atmosfera do longa de uma forma belíssima.

Quanto a Jake Gyllenhaal, ele mostra ao mundo o porquê de ele ser um dos atores jovens mais requisitados da atualidade. Ele está perfeito no papel principal, em que, além de sua aparência mórbida, ele consegue transmitir, sem falhas, toda a loucura e sofrimento de seu personagem, fazendo com que o público tenha dúvidas sobre qual sentimento sentir por ele: simpatia, raiva ou, simplesmente, pena. O elenco de coadjuvantes também está afinadíssimo, com destaque para a jovem Jena Malone (de "A Galera do Mal"), vivendo a incompreendida Gretchen, com quem Donnie se envolve. O filme também conta com a participação de Drew Barrymore (de "As Panteras"), que também produziu este longa, e faz um papel pequeno na pele de uma professora jovem e ousada, que sofre a repressão por parte de seus superiores e dos pais de alunos por tentar “despertar o alunos" para a realidade que os cerca, através de literarura considerada "perigosa" por muitos.

“Donnie Darko” é um filme espetacular, dirigido com maestria pelo estreante Richard Kelly, que, logo assim de início, conseguiu mexer com nossas cabeças como poucos. Assista quantas vezes for possível, pois você sempre terá um impacto (ou uma opinião) diferente. Sua trama não é simples, assim como a vida também não é, contrariando as idéias que nos são vendidas, muitas vezes, por preços até acessíveis.

Cinema com Rapadura Team
@rapadura

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