Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sábado, 30 de abril de 2005

Entreatos

Parabéns a João Moreira Salles e a VídeoFilmes por uma obra tão importante para a história do nosso cinema e da vida nacional e a nós, brasileiros, por termos um cineasta de tamanha relevância e honradez.

Entreatos é assim. A câmera vai conduzindo você devargarzinho, aproximando do universo da campanha de Lula à Presidência, em 2002, e quando você menos espera já está torcendo pelo "candidato" e esmiuçando a memória para sintonizar as lembranças da época ao ritmo do filme. O filme está em cartaz no Espaço Unibanco de cidades como Fortaleza e Belô.

Com a elegância que lhe é peculiar (vide Nélson Freire, citando apenas um exemplo), João Moreira Salles acompanha passo-a-passo o cotidiano agitado de Lula às vésperas da eleição e de forma sutil conduz o espectador pelos meandros da campanha. Quando a gente menos espera, já está no jatinho de Lula, e ninguém consegue segurar as gargalhadas na conversa dele com Palocci, acompanhada com interesse por José Alencar. Uma delícia aquele primeiro bate-papo no avião. Depois vem a entrevista pra rádio numa barbearia, o Lula bonachão, falante e gozador, a inusitada história do "TL", a alegria galhofeira ao relembrar de como fazia, junto com os companheiros operários, para escapar das pancadas durante as greves de 79 e 80, a conversa com o "companheiro Bush" durante gravação de programa (quando ele lamenta nunca ter aprendido a batucar), a incrível história do gosto pelas gravatas (maravilha o Presidente assumir que sempre gostou de se vestir bem e que não sente saudade nenhuma do ambiente da fábrica mas sim saudade dos amigos), a provável criação do Sindicato dos Fotógrafos… Apesar de tudo, em todos os momentos, sobrepõe-se o bom humor do candidato e aquele intrometido interesse pelo futebol (pena que Lula também não é Botafogo). Ninguém sente passar as duas horas de projeção.

Vou discordar de João apenas quando ele diz que o Presidente não deverá gostar do filme. Pois eu acredito que não dá pra sair do filme sem gostar. Do filme e de Lula. Do primeiro, porque tal como um passeio de charrete na saudosa Petrópolis, nos convida, com simpatia, delicadeza e esmero, por um momento rico e bastante significativo da história do país. E do segundo porque não dá pra não sentir orgulho do Presidente honrado que ajudamos a eleger assistindo a Entreatos, nem dá pra acreditar que o poder fará o Presidente trair uma história tão emocionante como a do nordestino pobre (que escapou da seca na pequenina Caetés, teve de abandonar os estudos cedo pra ajudar a mãe a manter a família, perdeu um dedo, apanhou, foi preso, compareceu ao velório da mãe algemado, perdeu a primeira mulher, etc., etc), que ele soube deixar de ser com muita honradez e persistência, história tão calejada de luta, derrotas, vitórias, ousadia, dignidade e amor ao Brasil.

E João Moreira Salles mostra tudo isso sem dizer uma palavra em defesa de Lula, sem panfletarismo nem apelos popularescos. Tanto que escolheu as cenas mais reservadas de Lula pra compor Entreatos. Nenhuma das muitas cenas de grandes comícios e aclamação popular está no material selecionado. E todos nós sabemos o quanto o país viveu momentos de intensa euforia às vésperas de Lula sagrar-se vencedor, e até muito tempo depois de eleito. Prova inequívoca do imenso compromisso de JMS com a palavra empenhada junto ao então candidato Lula e seus assessores mais diretos, compromisso ético em realizar um filme com os bastidores da campanha presidencial por ter visto ali um momento único na vida do país, e também na história política mundial nenhum outro Presidente teve uma trajetória igual a de Lula com as mesmas nuances e o mesmo grau de participação popular.

Um dos grandes trunfos de João Moreira Salles reside justamente na capacidade singular de realização de um cinema assumidamente autoral e de requintada capacidade observativa. É tal a maestria de JMS ao adentrar os bastidores da campanha de Lula que os próprios personagens envolvidos aparecem na tela, cada um dando o recado a seu modo, com tamanha espontaneidade, como se dali a câmara estivesse ausente. O resultado é um filme extremamente tocante, leve, gostoso de ver, de roteiro extremamente bem "costurado" onde cenas se entrelaçam de forma tão harmônica que nem parece serem resultado de uma edição que levou mais de ano, suor, trabalho indormido e até momentos de aflição. Foram 240 horas de filmagem para resultar em duas horas de projeção compondo um painel sério e honesto sobre os bastidores da campanha que João e competente equipe tiveram o privilégio de assistir tão de perto.

João Moreira Salles é um homem de cinema ademais porque aponta caminhos novos na difícil concepção de documentários, já vislumbrando a idéia de criar um centro formador e fomentador de novos oficiantes do gênero. Ao esboçar a trilha absolutamente pessoal onde trafega ao realizar um filme, João confirma justamente sua máxima principal, qual seja a de que o cinema documental é essencialmente autoral, ou então não é nada. E assim Entreatos é a visão de João Moreira Salles sobre este tão importante momento da vida nacional, tornado público por lentes acuradas e precisas, dele, de Wálter Carvalho e dedicada equipe. Temos todos o dever cidadão de assistir a mais esta obra-prima de João Moreira Salles e o orgulho por ter um profissional tão dedicado à construção da Nação Brasil Século XXI e tão corajoso ao assumir tarefa nada fácil como esta de adentrar de corpo e alma os bastidores de uma campanha política.

Parabéns a JMS e a VídeoFilmes por uma obra tão importante para a história do nosso cinema e da vida nacional e a nós, brasileiros, por termos um cineasta de tamanha relevância e honradez.

Que venham muitos e muitos outros filmes de João Moreira Salles, cujo nome por si só já recomenda qualquer filme.

Cinema com Rapadura Team
@rapadura

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