Cinema com Rapadura

OPINIÃO   segunda-feira, 08 de agosto de 2005

Hora de Voltar

Com uma câmera ágil e impressionista, Zach Braff constrói uma narrativa franca da juventude do começo do milênio. Arrebatando dois Independent Awards - Melhor Filme e Roteiro de Estréia - o ator responsável pela personagem J.D. da série televisiva Scrubs (que passa semanalmente no canal pago Sony) é uma das grandes promessas dessa nova geração de cineastas. Destaque para a maravilhosa trilha sonora.

ATENÇÃO: Esta crítica contém informações que revelam detalhes que podem incomodar a quem não assistiu ao filme. Se este não é o seu caso, fique à vontade para lê-la.

Sem receios, uma coisa pode ser dita a respeito do filme Hora de Voltar: nenhuma outra obra cinematográfica retrata tão honestamente o jovem de 20 e poucos anos desse começo de milênio. A falta de perspectiva e de auto-conhecimento, a busca de respostas, a desilusão e a degradação são exploradas de forma genuína, de modo que o conservadorismo e o clichê passam longe. Aliás, é exatamente a originalidade e a não-estereotipação que transformam a narrativa em algo admirável. O estreante Zach Braff – que aqui protagoniza, dirige e assina o roteiro – constrói uma obra semi-auto-biográfia em que a identificação é natural.

Large (Braff) é um jovem ator de 25 anos radicado em Los Angeles. Desde os dez, ele vive em constante estado de torpor – já que o seu “pai-psiquiatra” receita-lhe lítio desde então. A morte da mãe faz com que ele volte para New Jersey – depois de nove anos de ausência. Em uma palavra: há 15 anos sem sentir absolutamente nada – nem os prazeres nem as dores da vida -, Large defronta-se com aquele momento singular e determinante de sua existência: algo tem de mudar. A hora de voltar para casa é a hora de voltar à vida, já que o rapaz decide não levar os medicamentos e ficar “lúcido” durante o tempo em que pretende ficar na cidade natal. Quando conhece Sam (Natalie Portman) e reencontra o amigo de infância/adolescência Mark (Peter Sarsgaard), Large ressurge.

A precisa direção de Braff conduz a narrativa com segurança, e sua câmera inteligente capta todas as nuances das personagens. É preciso fazer, entretanto, destaques especiais às metafóricas cenas do abismo, do ecstasy na festa e da camisa-combinando-com-a-parede (provavelmente, a cena mais indie da História do cinema). Espera-se, a todo instante, a redenção das personagens: um choro descompensado de Large, uma discussão acalorada dele com o pai, uma crise epiléptica de Sam. Braff distancia a narrativa do lugar-comum. Entretanto, as personagens que têm um tom coheniano – como o quixotesco cavaleiro, o ‘joalheiro’ que vive em um navio atracado na beira de um abismo, o jovem milionário que descobriu o “velcro silencioso”, o adolescentizado policial etc. – destoam do resto do filme. São desnecessárias, embora não comprometam o roteiro. Algumas cenas – principalmente as gastas com as supracitadas personagens – são longas demais, enquanto outras que se concentram no tripé Sam-Large-Mark poderiam ter sido mais aprofundadas.

A adolescência tardia é uma das principais marcas dessa nova geração. E as personagens de Hora de Voltar são assim: desde a infantilizada Sam até o próprio Large, que é emocionalmente vinculado ao pai, apesar de viver em outra cidade há bastante tempo. Em determinado momento, uma personagem diz à mãe, quando esta lhe propõe trabalho no “mercado imobiliário”: “Eu tenho apenas 26 anos, não tenho pressa nenhuma. Para que essa sua pressa?”. Questionar o papel da família e a sua própria inserção no mundo – bem como insistir na falta de pressa – são problematizações que parecem esgarçadas até os vintes e poucos anos. A busca pela singularidade e pelo amor – em todos os níveis – são o norte. A personagem de Large se constrói no constante (des)equilíbrio entre Sam e Mark. A ligação dos três com a morte situam-nos em planos diferentes: Sam cultiva um cemitério de peixes e ramsters, e leva todo o processo de luto muito a sério; Mark é coveiro e saqueia os túmulos; Large teve a vida reconfigurada com a sua primeira experiência com a morte: o funeral da mãe.

A trilha sonora é arrebatadora. Aliás, um bom soundtrack parece ser a marca registrada da produção atual de cineastas independentes e/ou hype – rapidamente, pode-se citar Paul Weitz, Alexander Payne, Brad Anderson, Hans Weintgartner, Quentin Tarantino. Além de a própria música ser ótima – desde "Don’t Panic" do Coldplay, passando por "The Only Living Boy in New York" de Simon & Garfunkel, até chegar às da obscura "The Shins" -, a estruturação sonora do filme coloca a música como um dos elementos centrais. A personagem de Portman, em determinado momento, faz com que a de Braff ouça "New Slang", de The Shins: “essa música vai mudar a sua vida”, anuncia. Embora não sejam ondas sonoras que se responsabilizam pela vida de alguém, o ato de ouvir a música – que lembra muito as de Belle and Sebastian – é o prelúdio da mudança de Large. Essa é a importância central que a música adquire. Aliada às frenéticas imagens impressionistas da perturbação de Large, a música de Zero Seven – "In The Wainting Line" – pulsa. Salta nas veias, até. É preciso, ainda, fazer um destaque especial à inserção da música "Let’s Go", da Frou Frou, que banha o trailer e o final do filme.

Hora de Voltar faz um contraponto irônico aos melodramáticos filmes juvenis convencionais: o final que soa clichê se revela exatamente o oposto. Enquanto se espera que o jovem parta para refletir, “se achar” e buscar realização profissional – para, somente depois, iniciar um relacionamento sério, maduro – ele inverte e decide encarar a vida ali; essa decisão revela uma incrível coragem do roteirista Braff. A vida é isso mesmo; sem maiores dramas adolescentes. Mas… E agora, o que fazer? É essa a pergunta que ressoa não só na cabeça de Sam e de Large, mas na de todos jovens-de-20-e-poucos-anos-que-não-pretendem-se-render-e-constituir-uma-família-padrão-e-realizar-um-trabalho-burocrático-e-regular. É o amor e a singularidade que se procura. Mas, então, o que fazer? Ficar “lúcido” pode ser um começo; entre o torpor do lítio e a exaltação do ecstasy, fica-se com a vida. As dores e os prazeres da vida.

Cinema com Rapadura Team
@rapadura

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