Cinema com Rapadura

OPINIÃO   segunda-feira, 11 de julho de 2005

Irreversível

Ousado, instigante, chocante, humano, pungente e incrivelmente belo. Essas são apenas algumas caracteristicas dete maravilhoso filme. Assista predisposto a mergulhar em um espiral de emoções e conhecer até onde o ser humano é capaz de chegar.

Nascido na Argentina e naturalizado na França, o diretor estreante Gaspar Noé causou um rebuliço na comunidade de cinéfilos com seu filme “Irreversível”. Pais proibiam suas filhas de vê-lo, e gerentes de salas de cinema se recusaram a exibi-lo. Com certeza, o filme não faz concessões, é como se beliscasse a ferida, apertasse e ainda perguntasse se você quer mais. Independente de sua resposta, ele belisca mais ainda. “Irreversível” é um filme difícil. Difícil de aceitar o destino trágico de nossa personagem. Difícil de ver o que o destino preparou para ela.

Tachado por vários críticos e cinéfilos como um filme de violência barata e gratuita, a película nos mostra uma violência real, diferente de vários filmes que são feitos por Hollywood, de maneira que uma criança de oito anos pode assistir a um genocídio sem se chocar.

Contando uma história relativamente simples sobre uma moça que briga com o namorado em uma festa, vai embora e, no caminho, é estuprada, o filme acerta no alvo ao contar a historia de trás pra frente, recurso utilizado em “Traição” e “Amnésia”. Acerta porque a grande mensagem e a frase que abre e encerra o filme é: “O Tempo destrói tudo”. E, ao final do filme, ele tenta desesperadamente causar uma aparente paz, tranqüilidade. Infelizmente sem sucesso.

Se você está entre a maioria que não gosta de encarar a realidade como ela se mostra, dura e crua, assista aos “blockbusters” que se entulham nas prateleiras das locadoras. Agora, se você está entre um seleto grupo que não encara a arte de fazer cinema como apenas diversão, não coma nada antes de sentar-se na poltrona e apreciar um dos filmes mais belos, humanistas e chocantes que o Homem já ousou produzir.

O porquê de todo esse alarde em relação ao filme é pelo fato dele mostrar duas cenas muito impactantes: a primeira, que se passa numa boate gay sadomasoquista, em que a câmera gira incontrolavelmente com uma fotografia avermelhada e com uma música nauseante (aspectos técnicos em que irei me aprofundar mais à frente), mostra um assassinato de um cafetão e provável estuprador da heroína; a segunda é o tão malfadado estupro da personagem principal. Ambas são de um hiper-realismo extremo, onde os níveis de sadismo e perversão são de deixar qualquer pessoa com um ‘nó no estômago’.

A cena final, com Alex lendo um livro num parque ensolarado com crianças brincando com a água que sai dos regadores da grama, com a câmera girando e dançando alegremente, tenta desesperadamente nos transmitir uma sensação de paz, tranqüilidade, mas não adianta, sabemos o que o destino havia preparado para nossa heroína.

Infelizmente, até agora, ninguém percebeu que o filme, embora violento na melhor concepção da palavra, é o maior libelo contra a violência já lançado no cinema contemporâneo. É muito equivocante para nós acreditar que as cenas são gratuitas. Não, gratuitas são as cenas de morte de todos esses milhares de filmes americanos. O filme “Irreversível” é sensível. A violência é exposta para nós de modo humanista. A fragilidade do Tempo e a irreversibilidade dos fatos são certezas incontestáveis mostradas de modo lírico por Noé.

Noé prova uma tese: a violência é real. A violência do cinema (e da televisão) é real. Assim como o estupro de Alex, as guerras que passam na Globo ou CNN são reais. A violência de “Irreversível” nos transforma não necessariamente em melhores, mas nos torna mais lúcidos, mais conscientes. O filme de Noé é repulsivo porque ele escancara verdades, não de maneira metafórica como nos filmes intelectuais, mas de maneira clara e explícita, assim como Homero, na “Odisséia”; Milton, em “Paraíso Perdido”; e Dante, na “Divina Comédia”. Ele coloca um espelho diante dos nossos rostos hipócritas, pusilânimes, covardes, que vemos a violência do mundo e ignoramos como se ela não pudesse acontecer com a gente. Noé dá o seu recado: “saiam da sala de cinema e vejam a vida como ela é”.

Quanto aos aspectos técnicos, o filme é arrebatador: uma câmera que gira incontrolavelmente no começo (ou final) do filme, que denota o estado de espírito dos personagens; a fotografia, que, nos momentos mais fortes do filme, é sempre avermelhada, remetendo ao Inferno, o túnel em que Alex é estuprada, como se fosse a entrada para o Inferno, já que cronologicamente ele ocorre primeiro que a vingança; o fato do filme não ter praticamente nenhum corte, causando, assim, um maior realismo e uma maior identificação do público com ele; a beleza ímpar das atuações, em que Mônica Belucci (Alex), com sua performance que exala feminilidade, fragilidade e, ao mesmo tempo, sua voluptuosidade e “sex-appeal” contrastam bruscamente com o aspecto grotesco do cafetão (Philipe Nahon), um sujeito forte, baixo, de movimentos rápidos, e um enorme nariz de lutador, toda sua figura, enfim exprime violência, força e crueldade.

Em suma, “Irreversível” não é um filme para todos, mas apenas para aqueles que querem, e conseguem, olhar a realidade como ela realmente é, não de modo plastificada, como é mostrada à exaustão, mas de modo real. Aprecie um dos filmes mais belos e doentios que a humanidade já ousou produzir e veja a aparente calma de um dia fatídico ir se degradando aos poucos, culminando num abismo de desespero e angústia.

Cinema com Rapadura Team
@rapadura

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