Cinema com Rapadura

OPINIÃO   domingo, 27 de março de 2005

Mar Adentro

"Ando devagar porque já tive pressa e levo esse sorriso porque já chorei demais / É preciso amor para poder pulsar / Cada ser em si carrega o dom de ser capaz de ser feliz” (Almir Sater)

Ramón Sampedro (Javier Bardem) era um homem aventureiro que trabalhava como marinheiro em navios, para que assim, pudesse conhecer o mundo. E conseguiu. Porém, o mar, que tanto ama, lhe deixou tetraplégico. Ramón vive com sua família na Galícia, aos cuidados especiais de Manuela (Mabel Ribera), sua cunhada. Apesar de todos em casa serem contra a eutanásia, seus parentes permitem que advogados e especialistas visitem Ramón constantemente, para que ele possa ganhar esse direito na Justiça. Uma dessas pessoas é Julia (Belén Rueda), uma advogada que acaba cativando Ramón e sendo cativada por ele. Rosa (Lola Dueñas) é uma mulher frustrada que saiu de vários relacionamentos hostis e, ao ver Ramón dar um depoimento na televisão, anima-se para ser sua amiga e tentar convencê-lo a desistir da morte. Há 28 anos Ramón encontra-se nesse estado. Realmente o ama, quem ajudá-lo a fazer esta última viagem. O seu único desejo é morrer dignamente.

O problema está no significado da palavra “digno”. O que é digno para Ramón e outras pessoas que estão em sua mesma situação, não é para a Espanha e para o mundo. Você deve estar ainda a questionar-se: qual a semelhança entre a bela canção de Almir Sater e a estória deste homem?

Ando devagar porque já tive pressa e levo esse sorriso porque já chorei demais: Ramón, na situação em que vive, é um homem simpático, com um humor recheado de ironias. Talvez esse detalhe tenha feito duas mulheres bonitas, uma delas casada, apaixonarem-se por ele, com direito a ciúme extra e tudo o mais. Convenhamos que o eterno charme de Javier Bardem conta bastante e encanta, porém o seu estado de espírito é o que o torna extremamente atraente, revertendo até uma antiga antipatia que eu sentia pelo ator depois de tê-lo visto atuando em “Antes do Anoitecer”. A personagem Rosa, após inúmeros relacionamentos falhos com homens ignorantes e insensíveis, vê o contrário em Ramón. Ele é culto, demonstra ter carinho por ela, faz o que pode para dar-lhe atenção, e ainda é dono de um bonito e sincero sorriso que expressa vários sentimentos, principalmente, a sua dor.

É preciso amor para poder pulsar: Quando Ramón passa a conviver com Julia e Rosa, notamos uma possível chance de que ele desista da eutanásia e continue a viver. O fracasso do amor leva consigo o sentido da vida.

Cada ser carrega em si o dom de ser capaz e ser feliz: Uma das cenas mais comoventes de “Mar Adentro” é quando Ramón, no meio da noite, desperta atordoado, gritando. Ele questiona o motivo de não possuir o dom de muitas pessoas deficientes (ou que possuem qualquer outro problema) de, simplesmente, seguir em frente. Gente que enfrenta as dificuldades e que continua na luta, vivendo. Ramón não possui esse dom, mas o respeita. Para ele, viver em uma cama por 28 anos não é uma existência digna.

Em uma entrevista sobre “Mar Adentro”, o cineasta Alejandro Amenábar comenta sobre o relacionamento de Ramón com outros personagens também fundamentais em sua vida. Com o seu sobrinho, Javi (Tamar Novas), ele possuía uma relação bastante característica de pai e filho. O desentendimento com o irmão, José (Celso Bugallo), chega a ser até peculiar, bastante direto. A bonita e emocionante ligação com a cunhada Manuela, de absoluta cumplicidade maternal, cativa aos espectadores. O certo é que o cineasta, que também trabalha com trilhas sonoras (é responsável pela trilha de filmes como “A Língua das Mariposas”, de todos os de sua autoria), saiu da linha do suspense (“Preso na Escuridão”, que é o original de “Vanilla Sky”, e “Os Outros”) para fazer bonito no drama, baseado no livro “Cartas do Inferno”, de Ramón Sampedro. Javier Bardem, que interpretara um paraplégico em “Carne Trêmula”, está maravilhosamente bem em “Mar Adentro”. Longe de mim a maquiagem que utilizaram no ator, pois o deixou com feições de velhice bastante verdadeiras, convencendo qualquer um que desconhece o seu trabalho, de que realmente é um homem velho. Não posso também deixar de comentar a mais nova injustiça do OSCAR, que deixou Javier de fora das indicações a Melhor Ator e indicou o Johnny Depp por “Em Busca da Terra do Nunca”. Amo o trabalho do Johnny Depp, mas, convenhamos, esse último papel dele está muito convencional para tamanha indicação.

O debate acerca do tema “A eutanásia frente à vida e à ética” contou com a presença de Antônio Mourão Cavalcante, psiquiatra; Flávio Arruda, coordenador do Movimento Vida; e Maitê Moreno Valdés, especialista em Educação Especial.

A cubana Maitê destacou o valor da família como suporte para Ramón. Toda a rotina que os seus parentes mantinham antes do acidente ocorrido foi abalada. O seu irmão teve que abandonar o trabalho no mar para cuidar do pasto, o que lhe trouxe muito desgosto, mas não diminuiu a dedicação ao doente. Já Antônio Mourão, contou que, para Ramón, a única coisa que valida a vida é o amor. Viver ou morrer, para ele é secundário. Para a ética a vida é um bem supremo, inquestionável. A visão que o cineasta possui da Igreja é caricata. Isso é bastante visível no filme. Flávio arruda, do Movimento Vida, que já houvera participado do debate do filme “O Agente da Estação”, repetiu a sua idéia: todos nós temos deficiências, físicas ou psicológicas. Ele, que, como Ramón, possui deficiência física, contou que se identificou bastante com o personagem, principalmente com o quarto, que é bastante freqüentado pelas pessoas da casa, deixando-lhe quase que sem privacidade. Respondendo à pergunta de uma espectadora, Mourão falou da imagem da mulher naquela região da Espanha.

O papel feminino é sempre disponível e acha que não possui o direito de opinar, como a personagem de Manuela, que não sabe o que pensar sobre o desejo de eutanásia do cunhado. Um advogado que estava na platéia vivera por quatro anos na Galícia e afirmou que é o que realmente acontece. Frisou a marca que a Igreja possui no país, sempre presente em todos os assuntos, porém, nem sempre com as melhores sugestões. Falou também que o país só evoluiu na política e no cinema, que, para ele, é até motivo de estudo para aprofundamento. Outro espectador fez um comentário. Desta vez, sobre o personagem de Javier Bardem. Ele é um indivíduo absolutamente lúcido, mas que não possui liberdade. O seu constante humor irônico é uma das maiores características dessa lucidez. A liberdade sobre a própria vida é fundamental. Ou somos indivíduos que podemos fazer o que desejarmos com a nossa vida, ou não somos. Mourão encerrou o debate com uma resposta à uma espectadora que contou, emocionada, que perdeu o pai na UTI. O desejo da família era apenas manter o pai em casa, para que ele pudesse ter qualidade de vida antes de morrer. Ele contou que esta é uma grande falha que ocorre não só aqui no Brasil, mas em vários países. Para o paciente, qualidade de vida é estar em casa, sentindo-se bem. Para o personagem do filme, qualidade de vida era vivê-la como um direito, e não como uma obrigação.

O Cinema de Arte, a partir de hoje, traz uma novidade: é a Faixa Nobre, que ocorrerá de segunda à quinta-feira, sempre às 19h30 no UCI. O filme dessa semana é a comédia espanhola “Minha mãe gosta de mulher”, com duas atrizes do universo almodóvariano: Leonor Watling e Rosa Maria Sardà (“Fale com Ela” e “Tudo sobre minha mãe”, respectivamente). As seções de sexta, sábado e terça-feira continuarão ocorrendo, nos mesmos horários. O próximo filme será “Spartan”, do cineasta David Mamet, que vasculha as agências de segurança dos Estados Unidos para mostrar como é feito na defesa da política externa.

Encerro o texto com o poema recitado por Javier Bardem, com o seu charmoso sotaque espanhol:

Mar Adentro

Mar adentro, mar adentro,
y en la ingravidez del fondo
donde se cumplen los sueños,
se juntan dos voluntades
para cumplir un deseo.

Un beso enciende la vida
con un relámpago y un trueno,
y en una metamorfosis
mi cuerpo no es ya mi cuerpo;
es como penetrar al centro del universo:

El abrazo más pueril,
y el más puro de los besos,
hasta vernos reducidos
en un único deseo:

Tu mirada y mi mirada
como un eco repitiendo, sin palabras:
más adentro, más adentro,
hasta el más allá del todo
por la sangre y por los huesos.

Pero me despierto siempre
y siempre quiero estar muerto
para seguir con mi boca
enredada en tus cabellos.

Pra quem não compreende a língua, vale deleitar-se de qualquer jeito, pois eu penso que todo poema escrito em Espanhol é bonito, independente de haver compreensão ou não. Quem explica?

Cinema com Rapadura Team
@rapadura

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