Cinema com Rapadura

OPINIÃO   segunda-feira, 30 de maio de 2005

Melinda e Melinda

Em plena febre de Star Wars, Woody Allen não poderia ter vindo em momento mais [in]oportuno. Para alívio de seus fãs, este filme não desaponta. Pelo contrário, acredito que ele seja um dos melhores feitos nos últimos tempos.

“Decifra-me ou devoro-te”. É a partir desta máxima da Esfinge dita ao apaixonado rei Édipo (na mitologia Tebana de Sófocles) que poderia iniciar uma crítica sobre Woody Allen. Por mais impactante que pareça, há de se pensar esse cineasta nova-iorquino realmente como uma grande incógnita a ser desvendada, passível de aprovação ou total repúdio. Não é realmente a grande maioria do público que se interessa em desvendar a neurose de suas personagens (que, por sua vez, se estendem à própria intimidade do diretor). Muitos chegam a ridicularizar o cineasta, acusando-o de ser um intelectual masturbatório e pernicioso. E, assim, vamos vendo mais um grande pensador da modernidade ser esmagado por suas idéias nada convencionais sobre vida, morte, arte, burguesia… Justamente porque uma considerável parcela do grande público não tem muita disposição de discutir as propostas refletidas na tela grande.

Mais saindo do disco arranhado em que sempre estou disposta a tocar, adentro-me agora no imaginário de um cineasta ímpar, dono de um estilo único, impassível de cópias. Pense comigo: em matéria de comédia, quem, dos cineastas em atividade, consegue se igualar a Woody, o mais independente, peculiar e autoral do time? Quem consegue superar esse pequeno grande homem, de óculos de armação grossa, de voz desafinada, que marca a identidade de tantos outros desajeitados por aí? Ele, que odeia sair de casa, que tem medo de elevadores e que prefere tocar clarinete a ter que ir para a premiére de seus filmes, sempre foi, é, e sempre será o mais nova-iorquino dos cineastas (a despeito da polêmica causada pelo seu [outro] novo filme Match Point, lançado no Festival de Cannes deste ano). Vamos lá, estou curiosa pela resposta? Alguém, em especial, foi recordado?!

O filme “Melinda e Melinda”, em cartaz no Cinema de Arte – na faixa nobre, até quinta-feira –, consegue mesclar a tragédia e a comédia de uma forma que só um Woody Allen seria capaz de realizar. Através de uma discussão entre intelectuais em um restaurante em Nova York, dois dramaturgos discutem se a condição humana é preponderantemente trágica ou cômica. Como prova dos nove, um dos amigos lança um argumento interessante: uma mulher muito bonita, chamada Melinda, interrompe um jantar de amigos sem ser convidada. Isso é uma comédia ou uma tragédia? “Todo ponto de vista é a vista de um ponto” (não me canso de lembrar Boff), e como tal prerrogativa, Woody Allen, com seus 69 anos, lança a motivação do seu 35. º filme: "A vida pode ser uma tragédia ou uma comédia, depende de como se olha para ela", revela um dos amigos. No decorrer do desenvolvimento das histórias narradas, uma cômica em confronto com outra versão mais dramática, o que se percebe é que, realmente, não tem como dissociar os dois gêneros. Eles se completam. “Melinda e Melinda era uma dessas idéias que poderiam ir tanto para um lado quando para o outro. Tanto poderia ser engraçada quanto trágico-romântica. Aí me ocorreu: por que não alterar as duas vias e ver se eu consigo fazer um filme desse modo?”, explica Woody Allen.

Por mais que o retrato trágico de Melinda seja amargo e pessimista, e da Melinda cômica seja leve e otimista, ambos se intercalam como se estivesse prontos para explorar certos temas bastante recorrentes na filmografia de Woody Allen: a fragilidade do amor, a infidelidade, a neurose, a incomunicabilidade, o requinte… Talvez seja por isso que os gêneros se intercalem com tanta facilidade. Como lembra Sy (Wallace Shawn), o dramaturgo cômico, ao falar do personagem que se apaixona por Melinda, “Ele está desanimado, está desesperado, tem idéias suicidas. Todos os elementos cômicos estão em seu devido lugar”. E essa idéia se completa com a resposta da Melinda (a trágica), que ao ser questionada sobre suas lágrimas, se são de alegria ou de tristeza, responde: "e não são as mesmas lágrimas"?

O interessante é que ambas as histórias desenvolvidas agradam o público. A Melinda trágica impressiona não só por sua história sofrida, mas pela magistral interpretação da atriz Radha Mitchell (a mesma de Em Busca da Terra do Nunca). Tão frágil quanto a primeira, a Melinda cômica carrega uma leveza que a reedifica numa pessoa mais forte, por mais paradoxal que seja. O interessante disso tudo é que uma pessoa qualquer, que passasse pelos mesmos motivos de uma Melinda trágica, por exemplo, poderia fazer uma leitura completamente diferente, o que, por conseguinte, acarretaria num desfecho igualmente diferente. Tudo realmente depende do olhar, o que justifica todos os louvores para este filme.

“Sempre achei que as circunstâncias para cada uma das Melindas eram parecidas”, comenta Radha Mitchell, que interpreta a personagem. “Uma via as circunstâncias de uma forma dramática, a outra vivia com esperança”, resume Radha. De fato, “Melinda e Melinda” é um tipo de filme que privilegia a autonomia do homem frente ao seu destino. As escolhas feitas, o enfrentamento dos problemas, a maneira como se lida com suas derrotas e fracassos inevitáveis em sua existência…

Enfim, tudo isso pode se adentrar no terreno da comédia ou da tragédia (ou dos dois). Vai depender sempre da leitura que fazemos das situações. Nada é determinado. Tudo pode ser mudado de maneira surpreendente. A vida é uma colcha de retalhos que podem ser coloridos ou p&b. Depende da forma como se costura. Em outras palavras, os fatos estão lá, indiscutíveis. No entanto, as tragédias que acontecem podem ser revertidas em sorrisos ou em lágrimas. O olhar que fazemos sobre as situações é que vai nortear seus respectivos desfechos.

O elenco é todo muito competente: o engraçadíssimo Will Ferrel (mais conhecido aqui no Brasil pelo programa "Saturday Night Live"), está impecável no papel do atrapalhado Hobie. Casado com uma poderosa e estonteante cineasta, este ator desempregado acaba se apaixonando pela Melinda – sua vizinha na história cômica. Chloë Sevigny (de "Dogville") também salta aos nossos olhos por representar com brilho e esmero a rica personagem Laurel, uma encantadora e surpreendente amiga de Melinda na história trágica.

Amanda Peet, Brooke Smith e Chiwetel Ejiofor também contribuem para que o filme garanta sua harmonia como um todo, sem precisar, por exemplo, da intervenção do próprio Allen no elenco (o que não seria uma má idéia, por sinal). No entanto, Woody Allen deixou claro a sua vontade de deixar seus possíveis papéis nas mãos de outros talentosos atores (que muitas vezes são interpretados pela crítica como seus alter egos), tais como John Cusack e Kenneth Branagh. Mas o que se repercute é o que o brilhantismo de Ferrel conseguiu ofuscar o dos demais, o que propiciou o comentário de ser ele, realmente, o seu mais convincente alter ego.

É claro que Woody Allen e seus filmes viraram um marca registrada: os créditos de abertura, sempre com o mesmo tipo de letra sobre um fundo negro, juntamente com uma a trilha sonora que se rende, sem cerimônia, aos clássicos do jazz, já nos convidam para um universo único e pra lá de agradável. Em se tratando de música, o próprio Allen revela: “A música foi usada no início para definir a atmosfera e contrastar as histórias. Usei Stravinsky para os momentos mais pesados e Duke Ellington para as cenas mais leves. Mas eu também trocava sempre que tinha vontade”. E como é bom sentir pulsar na tela a vontade desse cineasta, viu?

Em plena febre de Star Wars, Woody Allen não poderia ter vindo em momento mais [in]oportuno. Para alívio de seus fãs, este filme não desaponta. Pelo contrário, acredito que ele seja um dos melhores feitos nos últimos tempos. Talvez porque trata de uma querela antiga em se tratando dos dois gêneros aristotélicos da poética clássica. Qual o melhor? A tragédia ou a comédia? Ao bem da verdade, o que sei é que a comédia se torna mais divertida quando carrega um quê de tragédia. E também sei que a tragédia às vezes é tão terrível que é inevitável um riso. É ou não é verdade que rir é o melhor remédio? Rimos, choramos… A verdade é que a vida é uma dicotomia só. Sempre oscilando entre o trágico e o cômico. Oscila tanto que muitas vezes não conseguimos nem mais distinguir. Talvez seja dessa inconstância que se constrói a condição humana, pelo menos é o que eu imagino.

Cinema com Rapadura Team
@rapadura

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