Cinema com Rapadura

OPINIÃO   domingo, 31 de julho de 2005

Operário, O

O diretor Brad Anderson consegue construir uma personagem complexa que caminha para sua total degradação física e psicológica. Em um filme visualmente competente, reúnem-se elementos do expressionismo alemão, do cinema independente estadunidense e da literatura do Leste Europeu.

Trevor Reznik é um arquétipo dostoievskiano. Debilitado física e psicologicamente, Trevor está sendo consumido por um sentimento de culpa, e se sente inexoravelmente oprimido pelo mundo que o cerca. Paranóia, confusão e total desconhecimento sobre a sua própria condição caracterizam o estado da personagem. Não é à toa que, em um close-up nada elegante, vemos o livro que ele está lendo: O Idiota.

A história de Trevor é contada por um modo lynchiano inconfundível: personagens obscuras e misteriosas – que nos parecem irreais -, enxertos oníricos homogeneamente misturados aos "fatos reais", inexplicáveis mensagens criptografadas. A atmosfera do filme remete à estética da corrente realista do expressionismo alemão (kammerspiel), que visa a, por meio de distorções e simbolismos, retratar emoções e reações subjetivas. O Operário merece, sim, atenção.

Vinte e oito quilos mais magro – proeza conseguida graças a uma rígida dieta baseada em uma lata de atum e uma maçã por dia -, Cristian Bale interpreta um cara destruído. Sem conseguir dormir há um ano, ele mal se alimenta e simplesmente vagueia feito um zumbi de casa para o trabalho, do trabalho para um café no aeroporto e de lá para casa. Coisas estranhas, entretanto, começam a assustá-lo: o aparecimento de Ivan, um cara que ninguém conhece mas que vive zanzando pelo seu espaço de trabalho, e mensagens estranhas que surgem na sua geladeira e que indicam algum tipo de ameaça. Após um trágico acidente, ele passa de “o cara excêntrico” para uma persona non-grata, na oficina em que trabalha. Ele está ficando louco ou alguém está planejando algo contra ele?

Pouco importa. Com um roteiro extremamente simples – que, perigosamente, beira o simplismo -, a proeza de O Operário reside na evolução da psicopatologia da personagem, aliada à visão de mundo cristã caracterizada por Nietzsche – que põe a culpa como um elemento central. As impossibilidades de sono (perturbação) e de alimentação (auto-punição) e a mania de limpeza (tentativa de, fisicamente, ‘se limpar’ moralmente) são os índices marcados em Trevor. Ele está preso no tempo e no espaço – o relógio nunca cessa de marcar 1:30, e as constantes idas ao aeroporto se caracterizam como um incontrolável e impossibilitado desejo de fuga.

Com uma fotografia escura e cinzento-esverdeada e com imagens granuladas, peca-se apenas por excesso de closes-up. Obtém-se sucesso, entretanto, na configuração de um ambiente paranóico e intranqüilo. Se Trevor é a figura caquética do quadro de Munch, o ambiente ao seu redor é o retrato do mundo caótico e apavorante pintado pelo norueguês e vivido intensamente pela personagem de Bale.

À primeira vista, o título "O Operário" traz a idéia de trabalho repetitivo, alienante e exaustivo. A carga dramática que um “simples” operário traz desconstrói o arquétipo do trabalhador como indivíduo bidimensional parte de uma massa proletária, colocando-o como suscetível à desestabilização emocional e à crise existencial relacionadas aos deveres do homem para com o seu semelhante. O Operário trata das relações sociais por meio da defesa do ser humano como um indivíduo ético e humanista, que defende a vida e a punição legalista (“burguesa”) para todo delito. O filme começa e tem em seus momentos finais tomadas de Trevor por detrás de um vidro, como ‘em observação’. Colocando um homem comum em estudo, o filme obtém sucesso ao retratar a destruição físico-química de um homem devido a questões morais. É a fisiologia da culpa.

Cinema com Rapadura Team
@rapadura

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