Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sábado, 18 de fevereiro de 2006

Ponto Final – Match Point

Pode-se definir Ponto Final em duas palavras: ironia sutil. Ponto Final é diferente, é Allen, mas é diferente. Muito mais comedido, muito mais sutil, e creio que é toda essa sutileza que faz de Ponto Final uma grande surpresa.

É incrível como o ar britânico de sua nova morada mudou o clima de seu filme – pelo menos em relação aos que vi dele -, deixando de lado aquele clima cômico, encabeçado por uma neurose aguda e um sentimento quase filosófico sobre relacionamentos. Allen sabe muito bem o que está fazendo, com uma breve anedota sobre a sorte ele abre o filme. Uma mera inserção da superstição num jogo de tênis, e como um simples momento de sorte ou azar seu jogo pode ser decidido. A vida para Woody Allen seria assim, formada por acasos. Momentos desconexos que numa lógica poderiam surtir um efeito. Não é destino, é simplesmente sorte.

Allen é um cara fora do comum. Ele é um homem bem bizarro. Deixando de lado toda história da vida dele que envolve escândalos sexuais – vai entender como aquele homenzinho consegue tanta mulher -, e levando em conta sua filmografia, vemos um homem que prestigia a comédia de humor negro. Certo que Allen já saturou bastante seus personagens – homens neuróticos à margem de relacionamentos conturbados e sem rumo algum -, e é por isso que ele acertou fugindo do estereotipo que se tornou. Não só em suas aparições na frente da tela, mas na formação das personagens. Ponto Final é diferente, as personagens são mais distintas e mais sólidas, e é uma presunção deliciosa que constrói o drama/suspense na intragada vida deles.

Partindo de uma premissa fantástica – homem se casa com uma mulher da alta sociedade britânica, mas seus libidos não se contentam apenas com ela buscando uma paixão avassaladora na namorada de seu cunhado, tornando-se extremamente obsessivo esse relacionamento por parte dela, fazendo com que ele reavalie seus valores -, e de um trailer espetacular, Ponto Final regojiza-se com um ritmo calmo e com uma simplicidade assustadora, de modo contrastante à intensidade, aplicada tanto no plano romântico, quanto no suspense propriamente dito.

Muito especulou-se sobre a semelhança com Crimes e Pecados, dele mesmo. Apenas as tramas parecem-se, a maneira de Allen construir tais mundos é completamente diferente. O mundo britânico apodera-se de um Woody quase apagado, cravado nas esquinas, para contar uma fábula. Ponto Final é uma fábula e essa é a conclusão do texto, meio precipitada, aliás. Sem maniqueísmos, é uma história de um ser humano levado ao seu extremo – ou seria ao seu limite? -, que sem saber exatamente o que fazer age por impulso, sem escrúpulos, tentando se livrar de seus problemas. O clima de suspense a partir desse momento é instigante e soberbo, a cada revelação seu coração bate mais forte, e os momentos cômicos abrandam esse clima. E o que ele soube construir bem nesse filme é exatamente esse jogo com o espectador. Ele vai criando um cenário diferente a cada revelação, e desmentindo tudo numa piada carregada de ironia. A ironia da vida.

Talvez o mais belo não seja a poesia que se cria no esplendor do acaso, da futilidade da vida, da bola caindo, talvez o mais belo seja o romance nascido por duas pessoas decididas. E não só isso, provavelmente o mais instigante esteja na própria conquista daquela paixão ensurdecedora – para eles sem precedentes -, que causa no impacto, um desejo avassalador, ao primeiro olhar, e na sedução austera e elegante, o momento máximo de prazer ao se conhecerem num simples jogo de ping-pong. A partir daí nasce um intrínseco jogo de sedução, carnal e emocional, levado a proporções magnânimas em segundos, e relegado a nada neles próximos. Ambos querem, Chris aparentemente mais que Nola, na verdade apenas no demonstrado. Querem e no acaso do destino conseguem, mas ela havia sumido, e agora ressurgira, como se nunca houvesse existido. A psicose dos momentos subseqüentes é fruto de um amor proibido, levado a incrédula pureza da monogamia. Quando você deixa de ser o traidor, tais circunstâncias apagam-se do seu espectro e sua alma benevolente acata a singeleza de que vocês são feitos uns para os outros e somente vocês existem um para o outro. (explosão)

Falou-se tão mal do garoto Johnathan Rys-Meyers pela sua atuação como protagonista. Vãos detratores que não perceberam o quão bem se encaixa o rapaz no perfil do sujeito Chris, a quem uma vida cheia de culpa é mero obstáculo para uma vida cheia de riquezas. Bem intencionado quando lhe convém, faz o papel de um tipo sórdido, carregando o deleite por uma atração boba – pelo dinheiro? pelo luxo? – e uma paixão descomunal. O que vale mais? Rys-Meyers é uma surpresa agradável no elenco – excepcional todo ele -, trazendo uma compostura britânica no limite do clássico.

Obviamente quem rouba a cena é Scarlett Johansson. Nunca a achei uma atriz excepcional ou portadora de uma beleza estonteante. Ponto Final é o filme para quebrar qualquer essa impressão anterior que tive da moça. Meio artificial no começo, magnânima do meio para o fim. Mais sensual impossível, sejam nos diálogos, seja na expressão facial e corporal. O descontrole emocional da personagem transparece em cada ato, em cada sibilar, em cada alteração de voz… A prontidão de uma louca, a caracterização de uma sofredora, a razão de uma esperançosa.

Eu sinceramente nem comento mais sua performance, ou o roteiro, porque esse diálogo diz tudo:

Nola Rice: You're going to do very well for yourself, unless you blow it.
Christopher Wilton: And how am I going to blow it?
Nola Rice: By making a pass at me.
Christopher Wilton: So you are aware of your affect on men?
Nola Rice: They think I'd be something very special.
Christopher Wilton: And are you?
Nola Rice: No one's ever asked for they're money back.

Nem comento também as injustiças do Oscar, deixando tal magistral filme fora de Filme, direção, atriz coadjuvante, montagem, fotografia, trilha sonora…

Woody Allen conquistou meu coração. É bem provável que esse seja o meu filme número 1 desse ano. Num roteiro sem rodeios, e numa clemência a vida.

A vida é uma ilusão, e o tempo passa, passa…

Cinema com Rapadura Team
@rapadura

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