Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sexta-feira, 06 de maio de 2005

Queda! As Últimas Horas de Hitler, A

Sessenta anos após o fim do Terceiro Reich, o filme protagonizado por Bruno Ganz nos revela um Hitler humano. Veja como isso é possível.

Como iniciar uma crítica de um filme que versa sobre o mais atroz dos ditadores de nossa história? É, sem dúvida, uma tarefa difícil de fazer. Não pelo grau de importância que o tema representa, mas pelo fato de se estar falando nada mais nada menos que Führer e, pior do que isso, de tentar levantar as orelhas e descerrar os olhos de você, leitor, para uma não tão conhecida imagem de um monstro em forma de gente.

Tanto o testemunho da fiel secretária de Adolf Hitler, Traudi Junge, como o best-seller do historiador Joachim Fest ('Inside Hitler's Bunker: The Last Days of the Third Reich') serviram de material teórico para o filme que tinha a missão de retratar, da forma mais fiel possível, os últimos dias do ditador alemão, e de todo o regime totalitarista por ele criado, cuja força disseminou o ódio e o extermínio entre tantos seres humanos ao redor do mundo.

"Durante décadas, Hitler foi mostrado como um demônio, mas chegou o momento de encararmos como o ditador era na realidade", afirmou o diretor alemão Oliver Hirschbiegel, que audaciosamente vem nos apresentar um Hitler que, antes de ser ditador implacável que realmente foi, era um homem de fala gentil e com um lado humano, o que não implica dizer que era “bonzinho”. É bom deixar bem claro que o lado "humano" de Hitler não se traduz no esboço de carinho que o destemido ditador faz ao soldado criança (o último reduto de defesa da Berlim do III Reich), nem à simpatia pelo cão "blondie", nem à cortesia com as secretárias. O lado humano de Hitler se faz, sobretudo, pela sua vulnerabilidade ao mal de Parkinson, à loucura, à megalomania, e, até mesmo, ao choro e lamento de um ditador que vem descobrir nos últimos dias de seu império, que sempre esteve acompanhado de fracos e infiéis comandantes. É, sem dúvida, uma perspectiva de Hitler pouco vista em cinema, ainda mais por ser alemão. Ou seja, o olhar do povo alemão para a intimidade do führer. “O pior erro seria dizer que Hitler não era um ser humano, pois isso seria um desagravo, uma desculpa. Isso criaria um mito em torno da figura de Adolf Hitler. Sempre me incomodou esta crença de que haveria algo de fascinante na figura do ditador. Hitler era um genocida que, com plena consciência, a todo o momento tomou decisões que conduziram a uma catástrofe”, completa Hirschbiegel.

Não é um filme documental nem tão pouco se trata de um filme de entretenimento: é, sobretudo, uma representação de fatos que qualquer pesquisador, historiador ou qualquer curioso pelo tema conhecem de cor. “É evidente que o filme não pode dar respostas e nem esclarecer nada. Há 35 mil livros sobre a figura de Adolf Hitler, mas nenhum deles pode passar nem sequer uma noção de como este homem era na realidade”, confessa o cineasta. De fato, só podemos esboçar perguntas, o que não significa necessariamente dar muitas respostas, nem tampouco apresentar o sanguinário ditador de forma condescendente, inofensiva. Não devemos esquecer que por trás daquela trêmula mão se escondia a força que embalou toda uma mentalidade cruel que se disseminou, através da alienação, ao longo do tempo (até hoje o vemos estampados nas carecas reluzentes dos skin heads da vida, e de tantos outros grupos neonazistas). Uma alienação instaurada sobre toda uma população sofrida e oprimida pelo abandono e pelo desemprego. O que seria então o Nazismo, senão o filho da opressão e do desemprego? O que quero aqui dizer, amigos leitores, é que o Nazismo não teria acontecido se não fosse o vazio do povo alemão; se não houvesse existido, historicamente falando, a ferida pulurenta do orgulho nacional alemão assinado pelo Tratado de Versalhes (a isso, sobretudo, não podemos esquecer que se tratou da maior vergonha daquela nação)… Enfim, aquela nação precisava urgentemente de alguém para acreditar e para ser conduzido. O significado de Führer, pra quem não sabe, era justamente “o condutor”. E o que era Hitler para Alemanha, senão um condutor de pessoas humanas desprovidas de virtude?

Hitler era um exímio pensador. Tinha um bom gosto, apurado, refinado, ao modo mais próximo dos gregos. Queria fazer da Alemanha uma verdadeira Acrópole, mesmo que para isso desconstruisse a nação inteira. O arquiteto da destruição tinha grandes pretensões e queria dar uma dimensão absoluta à sua megalomania. Uma leitura da de Utopia, de Thomas More, e de O Príncipe, de Maquiavel não seria nada mal neste momento, mas o espaço me impede de seguir adiante. Fica então o convite aos livros, e também ao documentário “Arquitetura da Destruição”, de Peter Cohen, que nos apresenta a relação de Hitler com a Arte que tanto o vislumbrava.

Surpreendente mesmo é ver que aquele doce anjo de “Asas do Desejo” se transfigurar agora no pior exterminador de nossa história. Isso mesmo! É Bruno Ganz que está ali, diante de nós, numa interpretação digna de todos os louvores possíveis. Para “encarnar” o ditador austríaco, Ganz soube encontrar o timbre de voz correto; por mais que as imagens da época do III Reich documentassem o ditador sempre a discursar em voz alta, Bruno Ganz recorreu à emissão radiofônica de uma festa a qual Hitler participou, e de onde foi possível extrair o tom de voz pelo qual o mesmo conversava com os convidados.

Assista a esse filme com os olhos bem abertos para não deixar escapar nenhum detalhe. E não tente formular nenhuma resposta para as perguntas que há de levantar, pois o filme em questão é um apelo por uma nova forma de pensar. Um apelo para sermos honestos conosco. Um apelo para revermos nossos conceitos individuais e observarmos nossa realidade em comparação com aquela mostrada na telona.

Veja e levante seus próprios questionamentos. Porque falar sobre Hitler, meus amigos, não é mesmo uma tarefa fácil de responder (ainda bem).

Sem mais comentários.

Cinema com Rapadura Team
@rapadura

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