Cinema com Rapadura

OPINIÃO   quarta-feira, 28 de julho de 2021

Ainda Há Tempo (2020): baita estreia de Viggo Mortensen na direção

Viggo Mortensen faz boa estreia como diretor, trazendo um conto sobre abuso, preconceito e responsabilidades familiares.

“Ainda Há Tempo” faz parte da seleção do Festival do Rio 2021! Você pode assisti-lo gratuitamente na plataforma do Telecine apenas no dia 28/07 – acesse aqui.

Após alcançar o estrelato interpretando Aragorn na trilogia “O Senhor dos Anéis”, o ator Viggo Mortensen participou em inúmeras obras de qualidade acima da média. Procurando um desafio maior, ele produziu “Ainda Há Tempo”, filme onde também atua e estreia como roteirista e diretor.

A trama gira em torno de Willis (Lance Henriksen), um idoso com os primeiros sintomas de demência que precisa pedir para morar com o filho, John (Mortensen), até encontrar um novo lar perto da família, para assim ter os cuidados de que precisa. Enquanto está lá, precisa conviver com o cunhado e a neta, só que aí sua amargura, frustração e repulsa pela homossexualidade de seu primogênito vêm à tona, tudo potencializado pela falta de filtro social causado por sua condição mental deteriorante.

Com uma das melhores interpretações de sua carreira, Henriksen rouba todas as cenas, o que é ao mesmo tempo magnífico e difícil de assistir. Uma fonte de infindáveis torrentes de insultos bastante ofensivos, é duro perceber como cada palavra é carregada de sentimentos nocivos de um homem que nunca soube lidar com eles. É mais duro ainda perceber como cada sílaba do pai é uma facada no coração do filho, que faz de tudo para se controlar e manter uma postura calma e educada. A cena do almoço em que a filha (Laura Linney, excelente como sempre) chega com seus filhos adolescentes é excruciante de assistir, e a constante busca pela esperança de uma sensação de alívio é repetidamente esmagada e retratada em cada olhar e expressão de dor.

Mortensen também está ótimo no papel, que só aceitou porque seu nome no pôster conseguiria mais investidores para que o filme fosse feito. O ator acabou abrindo mão de seu próprio salário para que o projeto viesse à tona. Com uma mistura de sua direção e roteiro, o longa permeia memórias de um jovem Willis (Sverrir Gudnason), desconexas e confusas, mas que revelam um homem que ansiava por amor e conexão com a família, mas que perde o controle e tudo desanda para abuso e raiva. Há uma crítica à masculinidade tóxica que tempera toda a obra, já que homens eram criados com expectativas de serem infalíveis, durões e insensíveis, que não podem demonstrar afeto porque isso mostraria que eles eram fracos e inaptos.

É nessa mescla de flashbacks que Mortensen inteligentemente retrata ressentimentos nunca curados entre pai e filho, e facilmente conduz o espectador ao estado de espírito dos dois personagens quando mais velhos. A forma com que diferentes elementos visuais e sonoros são os gatilhos para as memórias invadirem a mente dos envolvidos é outro acerto do diretor.

O contraste entre a tempestade de fúria de Willis e o aparente poço sem fim de paciência de John causa uma angústia enervante, em que o público se pega em vários momentos se perguntando até onde os limites podem ser esticados. John sente que tem a responsabilidade de cuidar do pai doente, mas até quando ele consegue aturar os imparáveis golpes dirigidos a ele e a outros entes queridos?

Se há algo que pode ser criticado é que o roteiro apresenta Willis muito bem, mas não John. Se ilustra bem a cova emocional que o pai cava para si próprio, não tem o mesmo êxito em mostrar como o filho chegou no ponto em que está, em que faz o possível para que as ofensas não o afetem, mas isso, honestamente, não é um grande problema.

Com uma inesperada ponta de David Cronenberg interpretando um proctologista numa cena que exemplifica muito bem o que é conviver com Willis, “Ainda Há Tempo” é uma sólida estreia de Mortensen como roteirista e diretor. Buscando criatividade narrativa, sua carreira como artista ainda pode render obras verdadeiramente especiais e marcantes para a sétima arte. Mesmo não sendo um filme fácil de assistir, é imprescindível aproveitar a chance de conferi-lo no Festival de Cinema do Rio.

Bruno Passos
@passosnerds

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