Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sábado, 10 de abril de 2021

Agente Duplo (2020): dolorosa solidão e o admirável desejo de viver

Documentário disponível na Globoplay utiliza a investigação e o bom humor para chamar a atenção sobre o abandono na terceira idade.

A ficção nada mais é do que uma narrativa imaginada a partir de uma percepção da realidade. Por meio do irreal, é possível incluir elementos fantásticos que podem mudar conceitos muito reais. O documentário “Agente Duplo”, disponível no Globoplay, transita muito bem entre a ficção e a realidade. É uma trama que utiliza a investigação para ampliar os horizontes sobre um tema bastante ignorado na sociedade: a solidão na terceira idade.

A obra, dirigida e roteirizada por Maite Alberdi (“The Grown-Ups”), conta a história de um espião contratado por um investigador particular para trabalhar infiltrado por três meses em um lar de idosos. A apuração tem base em uma denúncia de uma cliente de que sua mãe estaria sendo abusada por funcionários do local.

O convocado para a missão foi Sergio Chamy, um homem que perdeu a esposa recentemente e vê a oportunidade como algo libertador, uma chance de colocar a mente fora do luto. Ele recebe câmeras escondidas para investigar o asilo São Francisco, que fica no distrito de El Monte, no Chile, e, mesmo com pouquíssimo conhecimento tecnológico, precisa se virar no WhatsApp e no Facetime para enviar diariamente um relatório sobre o seu dia.

Ainda no primeiro ato, ficam perceptíveis as reais intenções de Alberdi. Toda a parte de detetive é só um chamariz para conhecermos as histórias reais de cada uma das moradoras do local. Algumas são divertidas, mas a maioria delas é voltada para os mesmos elementos: o abandono, o sentimento de ingratidão e as diversas formas de luto. Sergio, o protagonista, é uma pessoa apaixonante, de conversa fácil e munido de uma educação ímpar. Por isso, as narrativas surgem de forma muito orgânica e o ritmo da obra é bem calmo, demonstrando por meio de cada cena um sentimento de saudade e pesar.

Mesmo lidando todo o tempo com a solidão, a diretora mostra como momentos considerados simples, como uma festa de aniversário ou uma pausa para cuidados em um salão de beleza podem significar muito para quem está se sentindo sozinho. Tais atos são vistos como a felicidade do ano, como a singela apresentação de fotos antigas ou até mesmo o respeito em ouvir um desabafo sobre a ingratidão dos seus familiares.

Um ponto que é tocado de forma muito singela é a cansativa rotina dos idosos no asilo. Sem poder sair na rua, muitos se entregam às atividades impostas pelas suas condições, e não por interesse. O tempo livre cria momentos de reflexão e contemplação à natureza, incluídas pela diretora como elementos de transição entre uma cena e outra. Outro tema destacado pelos moradores, que é pouco valorizado pelos mais jovens, é a autonomia de Sérgio, que pode se movimentar e fazer suas próprias coisas quando quiser. Ele também é privilegiado por receber a visita da família no seu aniversário, enquanto uma das senhoras, por exemplo, precisa que as enfermeiras do asilo simulem uma ligação da mãe já falecida para ela não ficar tão triste.

“Agente Duplo” é uma obra extremamente sensível sobre a solidão na perspectiva de quem já viveu de tudo e deu uma vida de amor aos seus familiares, e mesmo assim, depois de muito esmero e entrega, precisa contar os segundos para uma visita ou uma ligação de um parente para se cobrir com uma leve camada de amor. Com o tempo, o abandono consome tudo, sobrando apenas um intenso e impetuoso desejo de viver.

Fábio Rossini
@FabioRossinii

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