Cinema com Rapadura

OPINIÃO   quinta-feira, 08 de abril de 2021

Collective (2019): a corrupção mata

Documentário triste e árido sobre uma grande tragédia romena que revelou camadas profundas de corrupção sistêmica e suas consequências para a vida das pessoas.

Em 30 de outubro de 2015, ocorreu um incêndio na boate Colectiv, em Bucareste, capital da Romênia, causando a morte de vinte e sete pessoas e ferindo mais de oitenta. Das que foram hospitalizadas no país (algumas foram enviadas a países vizinhos), outras trinta e sete morreram nos quatro meses seguintes. Suas mortes foram vistas como suspeitas pelas famílias e pela imprensa e deu início a protestos e um amplo debate nacional sobre as condições hospitalares daquele país. O que se descobriu nos meses de investigação da imprensa sobre o ocorrido foi uma trama de negligência hospitalar e corrupção governamental. O documentário “Collective, dirigido por Alexander Nanau e duplamente indicado ao Oscar – nas categorias Melhor Documentário e Filme Estrangeiro – acompanha as investigações de uma equipe jornalística sobre o caso.

A história triste e chocante foi tratada com a seriedade que merece e sem floreios pelo diretor, que acompanhou o drama das vítimas, o luto das famílias, a indignação popular e a sede pela verdade da imprensa romena. A primeira metade da história é focada no jornalista esportivo Catalin Tolontan, editor-chefe do jornal Gazeta Sporturilor, que conduziu uma corajosa investigação sobre as causas das mortes dos feridos, descobrindo, sob risco à sua própria segurança e de sua equipe, um grande esquema de corrupção em que o sistema de saúde romeno se assentava.

O país tem uma história difícil, tendo sido dominado pela União Soviética na primeira metade do século passado e posteriormente vivendo décadas de ditadura. No ano da tragédia na boate, a situação política tampouco era estável. O último governo havia sido deposto e um grupo de tecnocratas ocupava o poder havia um ano até as eleições seguintes. Nada justifica o que a investigação descobriu sobre os acordos entre as indústrias químicas e os hospitais nacionais, movidos a propina e até mesmo adulterando os desinfetantes hospitalares para aumentar seus lucros. Como se não bastasse a conduta criminosa dos envolvidos, o desenrolar chocante dos acontecimentos revelou camadas ainda mais podres do sistema de saúde romeno, envolvendo a compra de licenças médicas, desvio de verbas e toda uma estrutura corrupta de administração hospitalar. Uma das bravas médicas que denunciou a situação, resume assim a postura da classe médica romena: “Nós não somos mais humanos, só nos importamos com dinheiro“.

À certa altura, a investigação conduzida bravamente por Catalin e seu time é até mesmo culpada por órgãos de imprensa chapa-branca pelas consequências das revelações que trouxe à tona, que causaram uma aparente queima de arquivo de um grande magnata da indústria química e a queda de um Ministro da Saúde. Para os jornalistas da Gazeta, as consequências foram perseguição política e até ameaças vindas da polícia secreta.

A partir da metade do filme a história se volta ao novo Ministro da Saúde, um jovem idealista que promete em sua primeira coletiva de imprensa parar de mentir para os cidadãos. Isso porque quando os feridos da boate foram levados aos hospitais, o governo afirmou categoricamente que tinha todas as condições de tratar seus ferimentos e queimaduras. Posteriormente, descobriu-se que era apenas discurso político, a fim de não aparentar fraqueza frente à comunidade internacional. O que as imagens chocantes vazadas por corajosos médicos de dentro dos hospitais revelaram foi a total falta de condições sanitárias adequadas, onde, por exemplo, um paciente com sérias queimaduras estava coberto de larvas em pleno leito hospitalar.

Descobre-se, assim, que a estrutura de saúde da Romênia era uma máquina de propina. O próprio Ministro revela, em conversa com Tedy Ursuleanu, uma das vítimas que teve grande parte do corpo queimado e perdeu alguns dedos da mão, que todo o sistema abaixo dele estava podre. Nesse contexto, as novas eleições se aproximavam e o Ministro temia que as poucas mudanças que conseguiu levar a cabo para reconstruir o sistema de saúde de seu país poderiam ser abandonados caso o grupo político rival ganhasse.

O que esse filme difícil de assistir, mas absolutamente imprescindível, nos mostra são os impactos da corrupção política na vida das pessoas. Nada mais atual para um mundo em pandemia e um país como o nosso, com um grave histórico de corrupção, onde atualmente faltam leitos hospitalares, insumos médicos e vacinas para a população. Embora Nanau nos revele um chocante acervo de filmagens da boate em chamas – onde, instantes antes, uma banda se apresentava cantando uma música sobre corrupção -, esse não é um filme sobre o incêndio, mas sobre a coragem jornalística de revelar a verdade, mesmo diante de governos autoritários e perigosos. Grande lição para jornalistas do mundo todo. Aqui, em meio a dor de famílias marcadas pelo fogo, muitas sem seus entes queridos que não precisariam ter morrido caso os responsáveis pela coisa pública tivessem agido como deveriam, se sobressai a importância da imprensa como correspondente do povo numa sociedade livre e justa.

O filme foi indicado a inúmeros prêmios internacionais, incluindo o BAFTA, e ganhou o European Film Award. Ele é forte candidato na categoria de Documentário no Oscar, já que perde o favoritismo na de Melhor Filme Estrangeiro frente ao fabuloso “Druk – Mais Uma Rodada“, dirigido por Thomas Vinterberg e representante da Dinamarca. “Collective” é um filme fundamental aos fãs do bom jornalismo e da força coletiva na busca pela verdade e justiça.

Vinícius Volcof
@volcof

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