Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sábado, 20 de março de 2021

Professor Polvo (Netflix, 2020): selvageria e sensibilidade em perfeito equilíbrio

Documentário sobre a amizade de um homem e um polvo demonstra como a vida de um ser tão vulnerável pode trazer lições inesquecíveis para os seres humanos.

A amizade não é um sentimento exclusivo dos humanos. Pesquisas científicas já comprovaram que algumas espécies de animais também criam laços afetivos, seja como uma demonstração de carinho ou uma ajuda para aumentar sua chance de sobrevivência. Quem diria, porém, que seria possível existir a amizade entre um homem e um polvo? Essa é a premissa de “Professor Polvo”, um documentário da Netflix, que conta a construção dessa improvável união.

A obra dirigida e roteirizada por Pippa Ehrlich (em seu primeiro documentário) e James Reed (“Jago: Uma Vida no Mar“) se passa na província do Cabo Ocidental, na África do Sul. O protagonista é Craig Foster, um cineasta que morou durante toda a sua infância em uma casa que tinha seu quintal invadido pela força das ondas do Oceano Atlântico. Ele cresceu com um contato direto com a natureza, sempre mergulhando nas poças da maré. Em um momento ruim, já na sua fase adulta, ele volta para o mesmo local e passa a realizar mergulhos diários captando a vida marinha na floresta de algas rasas.

Em um dos mergulhos, realizados sem tanque de oxigênio, apenas prendendo a respiração, ele percebeu algo estranho, um tipo de amontoado de conchas. Por baixo delas estava um polvo escondido, fazendo uma armadilha perfeita para capturar um peixe. Muito interessado no comportamento do animal, Craig tem a ideia que mudaria a sua vida: e se fosse possível gravar todos os dias da vida desse polvo? Como encontrar diariamente um animal especialista em camuflagem? Como um invertebrado tão frágil pode viver com tantos predadores ao seu redor? Em busca dessas respostas, a visita ao molusco tornou-se a rotina do cineasta.

A obra é narrada e protagonizada pelo próprio Craig, então existe uma riqueza de detalhes ímpar no roteiro. Conforme o tempo passa, a confiança entre os dois só aumenta. Com tanto material gravado, fica fácil escolher as cenas mais interessantes, criando uma versatilidade maior ao documentário, que inclui cenas que transitam entre o drama, comédia e, acredite, cenas de ação com uma perseguição incrível entre presa e predador. O roteiro inclui de maneira discreta, mas muito bem disposta, o relacionamento entre Craig e seu filho Tom, que passava por momentos difíceis. Por meio da sensação de pertencimento ao mundo, eles tentam se reconectar com o contato com a natureza e os ensinamentos do “professor” do mar.

A trilha sonora de Kevin Smuts, que trabalha há anos compondo músicas para documentários, é absolutamente imersiva. A narrativa cria uma sensação de curiosidade misturada com uma melancolia, casando perfeitamente com a fotografia de Roger Horrocks, outro especialista no gênero. Em diversos momentos, ele aproveita os reflexos do sol no mar para compor seus quadros, construindo um cenário perfeito para destacar a movimentação dos tentáculos do animal e desenhando uma espécie de dança com uma belíssima locação natural. Outro ponto impecável é o design de som – em uma das cenas, por exemplo, é possível ouvir as ventosas do polvo criar uma pressão na mão de Craig e em seguida, um estalo ao se soltar.

“Professor Polvo” é um documentário com uma delicadeza enorme. É impressionante a força de vontade de Craig em seguir diariamente visitando seu amigo e é incrível como essa constância foi capaz de construir essa amizade. Trata-se de uma história inimaginável que demonstra como a vida pode ser assustadoramente selvagem e profundamente sensível ao mesmo tempo.

Fábio Rossini
@FabioRossinii

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