Cinema com Rapadura

OPINIÃO   quinta-feira, 26 de novembro de 2020

Quando O Galo Cantar Pela Terceira Vez Renegarás Tua Mãe (2017): dramaturgia em processo de refinamento

Fica bastante perceptível como a estreia de Aaron Salles Torres na direção de longas-metragens tem a empolgação de quem busca mostrar muito, apesar de nem sempre equilibrar todas as suas escolhas.

*Filme disponível na Mostra MacaBRo de Horror Brasileiro Contemporâneo, evento com exibições online gratuitas através da plataforma de streaming Darkflix entre 28 de outubro a 23 de novembro de 2020.

Livremente inspirada na frase de Clarice Lispector do conto “Feliz Aniversário”, que faz referência à negação e arrependimento de Pedro como relatados na Bíblia, a estreia de Aaron Salles Torres na direção em longas-metragens tem a energia criativa daqueles que pretendem apresentar um estilo vigoroso imediatamente. Porém, “Quando O Galo Cantar Pela Terceira Vez Renegarás Tua Mãe” também possui as oscilações de uma identidade artística que ainda precisa equilibrar várias escolhas formais intensas.

Na trama, Inácio (Fernando Alves Pinto) é porteiro num prédio da Zona Sul carioca. Após o adoecimento do pai Guilherme (Tiago D’Avila), ele precisa sustentar a casa. A situação se agrava quando fica obcecado por um dos moradores, fazendo a relação com a mãe Zaira (Catarina Abdalla) ficar insustentável. A partir daí, o local se transforma num cenário hostil em que as brigas prenunciam um desfecho trágico.

A abordagem de Aaron Salles Torres fica explícita rapidamente com a dinâmica dos três personagens centrais. Existe um tom histriônico em tudo que acontece naquele apartamento: os sintomas da doença respiratória de Guilherme; os ressentimentos na vida de Zaira; as excentricidades da mulher que, por exemplo, trata uma galinha como bicho de estimação em cima da pia da cozinha; os traços da esquizofrenia funcional de Inácio; e as dificuldades emocionais do rapaz, que precisa lidar com as pressões familiares e com questões íntimas mal resolvidas. Cada mínimo detalhe do ambiente é pensado pelo cineasta para potencializar o belicismo de mãe e filho, bem como aspectos do protagonista e uma sopa rala como única refeição nas noites.

Em termos de dramaturgia, a construção dos conflitos supera seus desenvolvimentos. O roteiro estabelece que qualquer situação pode desencadear discussões ásperas entre mãe e filho, como a retirada do lixo, os cuidados de Guilherme, o sustento financeiro como responsabilidade de Inácio, as projeções do futuro de Zaira, o estranho fascínio do porteiro em relação a Antônio, os horários e os alimentos das refeições, as conversas da senhora com outras pessoas, entre outras. Já como progressão do suspense, o texto precisa de maior apuro para desenvolver uma jornada mais intrigante que não seja tão rapidamente antecipada (o que deveria causar surpresa é minimamente previsível), além de explorar aspectos que recebem pouca atenção (o galo referido no título pouco contribui para a trama).

Dentro do componente dramático, a atuação de Fernando Alves Pinto contribui muito para o sentimento desolador da narrativa. O ator sabe apresentar nuances ao protagonista sem que seja necessário pontuar tudo didaticamente no roteiro, principalmente através do trabalho corporal: o tom de voz enrolado quando nervoso, os movimentos repetitivos quando desnorteado, os dedos contraídos em momentos de fúria e as reações destemperadas durante as brigas. Não é somente nas cenas em que discute com a mãe que ele evidencia as camadas do sujeito, afinal as sequências em que sua homossexualidade reprimida aparece o tornam um personagem ainda mais trágico. Entretanto, alguns momentos com ele são inconstantes e oscilam entre a expressividade de flagrar Antônio em um instante de grande intimidade e falta de variações nas brigas com Zaira.

O valor dramático da obra também se amplia com o trabalho de Catarina Abdalla. A personagem atravessa um percurso de humanização para mostrar como não se trata apenas de uma figura intolerável e agressiva, que poderia resumida em sua repulsiva cena inicial (é esse o inesperado efeito quando ela come uma manga) – durante esse arco, a atriz assume constantemente uma postura confrontadora a princípio sem razão, até ganhar nuances quando se entende seus ressentimentos e dores. Na virada do segundo para o terceiro ato, podemos sentir empatia por ela ainda que discordemos de muitas de suas atitudes. Mesmo que nossa percepção seja manipulada de forma coerente, certos diálogos com um vigia e duas funcionárias do Serviço Social poderiam moderar a sensação de artificialidade.

Se a dimensão narrativa precisaria conciliar drama e suspense com maior força, a abordagem estética define sua sensação geral de desconforto e repulsa com sucesso. A casa, como palco para situações majoritariamente infelizes e tensas, é iluminada com um incômodo tom esverdeado, que se funde ao amarelo e ao vermelho igualmente desconfortáveis; assim como também é enquadrada com ângulos incomuns, seja por planos filmados de baixo para cima (como quando são mostrados os sacos de lixo no corredor), seja pela composição de lentes grande-angulares deformadoras das laterais da imagem. Além disso, o prédio faz ecoar por todos os cantos as aflições de Inácio através da mixagem de som, que amplifica os ruídos da respiração do pai e deturpa conversas à distância sobre o próprio rapaz.

Aaron Salles Torres insere muitos elementos distintos, para organizar sua narrativa e sua unidade estilística, nem sempre equilibrados para desenvolver a dramaturgia e ampliar os efeitos sensoriais. Em especial, as tentativas de recontextualizar algumas sequências chaves sob outra perspectiva tentam criar impactos com reviravoltas na conclusão – pode até haver uma conexão entre o recurso e a degradação mental do protagonista, porém a decisão parece uma escolha mais caprichosa para referenciar outros filmes do que uma saída expressiva construída ao longo da narrativa. Assim, “Quando O Galo Cantar Pela Terceira Vez Renegarás Tua Mãe” é um esforçada estreia que, apesar de eventuais irregularidades, apresenta momentos interessantes.

Ygor Pires
@YgorPiresM

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