Cinema com Rapadura

OPINIÃO   terça-feira, 01 de dezembro de 2020

M8 – Quando a Morte Socorre a Vida (2019): os limites que atravessam corpos negros

Um filme que traz discussões infelizmente ainda necessárias, com uma trama que explora os espaços que os corpos negros conseguem ocupar na sociedade.

Cinema é um dos muitos cursos de ensino superior conhecido por ser elitista e embranquecido no Brasil, uma possibilidade já descartada da lista de sonhos de muitos suburbanos e periféricos. O premiado cineasta Jeferson De foi estudante de uma das mais importantes universidades do Brasil, a USP, contrariando e abrindo caminho pelas estatísticas que mostram que apenas 2% dos diretores no Brasil são homens negros. Com isso, a produção brasileira “M8: Quando a Morte Socorre a Vida”, adaptada do livro homônimo de Salomão Polak, ganha uma camada extra pela qual a visão do diretor exerce seu lugar de fala ao ser espelho da vivência do protagonista.

O filme retrata a história de Maurício (Juan Paiva), o único estudante negro de sua turma de medicina na UFRJ. Durante as aulas práticas de anatomia, ele fica abalado ao perceber que a maioria dos cadáveres é de negros, e o M8, o corpo de que seu grupo de estudos se encarregou, começa a manifestar fenômenos sobrenaturais que apenas Maurício é capaz de enxergar.

Jeferson imprime diversas cenas que exemplificam como o racismo se manifesta na sociedade brasileira atual, com todos os tipos de situações que marginalizam e desumanizam o corpo negro. Isso parece ser um grande apelo para que possamos entender e enxergar uma pauta que a branquitude se recusa a discutir. Inserindo Maurício em um ambiente branco e elitista, tanto na construção do romance com uma mulher branca quanto na escolha estética da montagem – que deixa o som livre, independente da imagem, e usa a música como elemento vivo da mensagem – o filme conversa com “O Compasso da Espera” (1969), inclusive na jornada de sobrevivência que culmina em uma cena de extrema violência sofrida pelos protagonistas de ambos os filmes – neste último vivido por Zózimo Bulbul.

No entanto, talvez pela necessidade do apelo, em vez de usar desses elementos como ferramentas que acompanham o centro da trama – que é interessantíssima – estes sobem para o primeiro plano e engolem a narrativa, deixando as intenções excessivamente mastigadas e forçadas. Ao explorar o mistério do cadáver, a espiritualidade e a religião é quando o filme brilha mais. Cabe destacar que Raphael Logam como M8, embora não tenha nenhuma fala, diz tanto com o olhar e com presença que é capaz de arrepiar. Porém, o filme se perde nas narrativas de outros personagens menores e por vezes até surge um estranhamento, como se perdêssemos uma informação importante que culminasse em alguns diálogos, talvez porque algumas cenas tenham caído na edição.

Outro ponto que causa estranheza é que, embora sejam notórios o emblemático Hospital Universitário do Fundão e as paisagens cariocas, não se percebe o Rio na maioria das falas e gestuais. Não só ausência de sotaque, mas diálogos ficam deslocados da realidade e podem trazer um problema de identificação por parte de quem vive na região. Talvez tivesse sido mais interessante se a trama tivesse recebido os corredores da USP. Ao compararmos com outra obra do diretor, “Bróder“, no qual essa característica é um acerto, esse aspecto fica mais evidente.

Contudo, se o filme peca nas falas, são nos olhares carregados de dores e certezas, no subtexto dos diálogos, principalmente quando Zezé Motta e Mariana Nunes estão presentes em cena, e nos vazios – que são muito bem trabalhados por De – que a mensagem ganha pungência e verdade. Afinal, o filme é carregado de muitas vivências que infelizmente são comuns e pode ser que seja difícil para os espectadores negros terem que reviver violências ao assistir esse filme. Mas o longa corresponde a um anseio de emancipação e representação quando traz não só um elenco majoritariamente negro, mas uma história de cunho social que, ao contrário de “O Compasso da Espera” de muitas décadas atrás, está sendo contada por quem é dono dela.

Tayana Teister
@tayteister

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