Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sábado, 04 de julho de 2020

Milagres do Amor (2019): beleza didática

Carregado de clichês e personagens rasos, o filme peca ao se contentar com o familiar e não investir em um maior refinamento de sua mensagem.

Não há como negar que as histórias de superação sempre foram um prato cheio para a sétima arte. Ótimas plataformas para explorar figuras excluídas pela sociedade, elas sempre transmitiram mensagens inspiradoras e que costumam abordar a aceitação do próximo, fazendo sua parte através das grandes telas para tornar o mundo um lugar melhor. Trabalhadas à exaustão, entretanto, muitas passaram a apresentar diversos clichês, exibindo um notável esgotamento através da tentativa de emocionar a qualquer custo em detrimento de uma boa narrativa. Revestido por ótimas intenções, é uma infelicidade que “Milagres do Amor” se encaixe nessa problemática, drama turco que peca por seu extremo didatismo.

Cansados de aturar o preconceito em sua cidade natal, o casal Aziz (Mert Turak) e Mizgin (Biran Damla Yilmaz) decide se mudar para outro lugar, auxiliados pelo querido professor Mahir (Fikret Kuskan) na mudança para uma cidade mais progressista. Inseridos em um ambiente supostamente mais moderno, eles deverão agora se adaptar a diferentes transformações culturais e persistir no enfrentamento de certos arcaísmos, forçados a lidar, ao lado de novos amigos, com intolerâncias relacionadas às tristes deficiências de Aziz. Vale notar que a produção dá continuidade direta aos acontecimentos de “The Miracle” (2015) – obra que é totalmente dispensável na compreensão de sua sequência, tendo em vista um resumo introdutório e o fato de não ter sido lançada anteriormente no Brasil. É essa a trama apresentada pelo diretor Mahsun Kirmizigül, uma bonita premissa apesar das familiaridades, mas que revela em sua condução os seus maiores erros.

Responsável pela construção de um singelo discurso sobre a importância do amor – mensagem destituída de quaisquer novidades, mas que convence ao evitar se complicar demais -, seria injusto ignorar que a direção domina suficientes artifícios para manter a atenção do público. Ela agrada através de seus carismáticos personagens – alguns que acabam rendendo bem-vindos alívios cômicos, caso do divertido senhor interpretado por Erdal Özyagcilar, por exemplo – e a partir de certas passagens que transparecem genuína pureza, conforme exemplifica uma emocionante sessão de cinema destinada a deficientes que ocorre em determinado momento. Não suficiente, é evidente também que existe certa coerência na evolução do protagonista, sendo interessante acompanhar a maneira como ele aprende a lidar com os obstáculos ao seu redor e observar, além disso, as sinceras relações que estabelece com aqueles que lhe oferecem auxílio. Dessa forma, é configurado um filme leve e fácil de se acompanhar na maior parte, aspecto que deve agradar uma parcela dos espectadores.

É uma pena perceber, todavia, que o longa não vai muito além das já mencionadas qualidades, afundando ao apresentar personas unidimensionais e ao desperdiçar oportunidades. À exceção do protagonista Aziz – que mesmo recebendo um maior tratamento acaba denunciando a falta de sensibilidade do diretor (ainda que não intencional) na escolha de alguns enquadramentos para retratar deficiências -, é quase impossível identificar figuras que vão além de maniqueísmos e caricaturas, fator que acaba minimizando não só a relação da plateia com aqueles em tela como também a transmissão da importante mensagem. É certo que determinados coadjuvantes não apresentam potencial para a construção de grandes arcos, mas a sua simplificação extrema prejudica especialmente Mizgin e o professor Mahir. Se o último se vê resumido a um mero instrumento de geração de empatia, encarregado unicamente de transmitir frases derivadas de qualquer outro projeto do gênero, o efeito que recai sobre a personagem de Biran Damla Yilmaz é ainda mais devastador, demonstrando a incapacidade do roteiro em alcançar a universalidade do discurso de aceitação e igualdade ao resumir sua única figura feminina de importância ao arquétipo da bondosa esposa ajudante.

Indo além, é também evidente a maneira como a obra recicla diversos de seus segmentos, repetindo montagens tematicamente muito próximas que acabam por denunciar uma clara falta de conteúdo no planejamento da produção. No caso das crianças que constantemente implicam com Aziz, por exemplo, acabam resumindo a intolerância que o filme tenta retratar a uma mera ilustração, jamais se arriscando a criticar as formas mais silenciosas que esta pode assumir. Não bastassem tais repetições, o excesso de momentos “manipulativos” também contribui para o desnecessário aumento da duração do longa, escolha que implica na presença de variadas cenas que em nada avançam a trama. São sempre conduzidas por uma espalhafatosa trilha sonora e exageradas interpretações, presentes apenas para tentar emocionar quem as acompanha custe o que custar. Por fim, a este último efeito também se somam forçadas reviravoltas no roteiro, decisões desprovidas de fundamento que acabam abusando da descrença do espectador e fantasiando excessivamente o discurso construído, minimizando seu impacto uma vez que certos acontecimentos tornam-se impossíveis de se acreditar.

Bem intencionado, “Milagres do Amor” é um drama leve e que deve divertir e emocionar os espectadores mais sensíveis. Para os já bastante familiarizados com o gênero, entretanto, a produção não é a melhor das opções, priorizando o sentimentalismo barato em detrimento de um maior desenvolvimento de personagens e de um refinamento mais cuidadoso de seu discurso. Mesmo revestido por uma bela mensagem, o filme não consegue sair do familiar e infelizmente naufraga através de seus clichês e rostos esquecíveis.

Davi Galantier Krasilchik
@davikrasilchik

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