Cinema com Rapadura

OPINIÃO   domingo, 21 de junho de 2020

#RapaduraRecomenda – Crepúsculo dos Deuses (1950): fantasmas de um cinema arcaico

Exercitando o gênero noir para construir uma interessante reflexão sustentada pelas diferenças entre o cinema mudo e o sonoro, o filme é uma encantadora declaração de amor ao verdadeiro significado de "sétima arte".

No dia 6 de outubro de 1927 foi inaugurada uma nova era na história do cinema, período que redefiniria completamente as formas de se expressar através das grandes telas. Essa marcante data representou nada mais nada menos que a estreia do famoso longa “O Cantor de Jazz“, primeiro filme a apresentar cenas em que se podia ouvir a voz dos personagens. Era o fim do chamado “cinema mudo”, marco que simboliza até hoje as diferentes transformações pelas quais o mundo artístico deve passar ao longo do tempo. Em determinados momentos, todavia, o apreço por antigas convenções e a resistência à modernização pode falar mais alto, atrasando assim a evolução que a arte de se contar histórias precisa ter periodicamente. Capaz de impedir a ascensão de nomes inéditos no mundo cinematográfico, é exatamente esse o “mal” que o grande Billy Wilder  denuncia em sua obra-prima, “Crepúsculo dos Deuses“, resgatando essa importante transição sonora para explorar os perigos de se idolatrar cegamente o passado.

Determinado a se tornar um grande roteirista, o aspirante Joe Gillis (William Holden) não se encontra na melhor das situações. Angustiado pelas dívidas que o rodeiam e insatisfeito com seu pequeno currículo de tramas medíocres, ele se vê prestes a desistir de seu verdadeiro sonho e trocar a ilusória Hollywood por uma pacata vida no interior norte-americano. Tudo muda, todavia, quando ele conhece a grandiosa Norma Desmond (Gloria Swanson), uma notória estrela do cinema mudo que reluta em aceitar que sua fase de ouro enfim terminou. Trabalhando arduamente na escrita de um filme que promoverá o seu retorno, ela decide contratá-lo para a ajudar no roteiro, iniciando assim um envolvente jogo de interesses cujos envolvidos farão o possível para alcançar a vitória e o estrelato. Escrita pelo próprio Wilder (em parceria com Charles Brackett), é essa a oscarizada trama que convida o espectador a refletir sobre as dificuldades de se fincar a própria voz nos traiçoeiros bastidores hollywoodianos.

Extremamente habilidoso na definição do tom investigativo e criminal do filme, o primeiro destaque da direção se deve ao inovador uso dos principais elementos dos chamados “filmes noir” – subgênero policial no qual a obra facilmente se enquadra. Inovando a inserção das típicas narrações em off, subvertendo a famosa “femme fatale” – figura feminina que costuma usar a sedução para manipular o protagonista -, e investindo na construção de uma atmosfera impregnada por uma ambígua moralidade, o diretor atrai assim o espectador e consegue realçar criativamente as complementações e os contrastes entre o mudo e o sonoro, respectivamente. Se a presença quase ininterrupta da voz de Gillis se justifica como um verdadeiro guia da narrativa – e revela ainda um inteligente uso da metalinguagem, permitindo ao personagem aproximar-se de seu sonho ao concedê-lo o papel de narrador -, ela também se sobrepõe ao riquíssimo design de produção, que dedicado ao detalhismo da mansão de Desmond configura um curioso microcosmo através do qual a atriz tenta manter seu legado vivo. Dessa forma, tem-se estabelecido um inquestionável elo entre a imagem e o som, ligação que Wilder reforça na tentativa de demonstrar a importância dessa modernização na sétima arte, mas sem que sejam desprezadas as contribuições do “cinema mudo”.

Por outro lado, ele estabelece também uma oposição que é esclarecida pela excelente construção da dupla central, desenvolvimento que permeia tópicos como a influência do campo visual e a necessidade de se buscar um propósito na montagem de uma peça artística. Intensamente vaidosa e antiquada, Norma é a representação perfeita da supervalorização do estético, desprezando o poder das palavras como a grande representante das interpretações silenciosas que é – sentimento que não por acaso acaba causando sua enorme dificuldade em escrever seu novo projeto -, gastando milhares na recuperação de uma beleza que jamais será como antes e buscando conforto nos vazios elogios de seu mordomo Max (Erich von Stroheim), um de seus poucos “fãs” restantes. Cega por seu intenso narcisismo e relutante em aceitar a chegada do “novo”, entrega assim um perfil persuasivo (conferido pelas habilidades dramatúrgicas) que perdura entre a obsessão e o afeto fingido, conforme demonstra a impressionante performance de Gloria Swanson.

Representando esse assustador espectro de um cinema que se recusa a mudar, a personagem contrasta assim com o interessante protagonista interpretado por William Holden (ator que se destaca ao conquistar o público apesar das duvidosas intenções), homem que luta arduamente para adentrar a vida nos grandes estúdios cinematográficos. Dono de ideias superficiais e desprovidas de quaisquer mensagens, Gillis tenta prevalecer em um meio comandado pelo lucro – ideal que, em nome da estabilidade, determina apostas seguras com rostos consolidados – e que pouco valoriza os que trabalham atrás das câmeras, forçado a buscar soluções junto a Desmond. Ao conhecer e se apaixonar pela carismática Betty Schaefer (Nancy Olson) – outra aspirante a roteirista que, diferente dele, insiste em nutrir grandes sonhos, ponderando sobre produções carregadas de poderosas mensagens -, todavia, acaba adentrando uma complicada situação, cultivando um amor quase impossível ao planejar parcerias com a talentosa garota enquanto tenta se desvencilhar das opressivas rédeas de Norma. Tem-se assim mais um brilhante lembrete dos devastadores efeitos que a rejeição a novas vozes – seja essa motivada pelo dinheiro ou por puro egocentrismo – pode causar, por vezes levando à corrupção de ideias originais e carregadas de autenticidade – tal como costumam ser aquelas originadas pelas próprias vivências do autor.

Como se não bastasse, Wilder ainda pontua seu metalinguístico testamento através de fascinantes comentários – geralmente presentes através do típico humor sarcástico do cineasta – acerca do artificial relacionamento entre as grandes estrelas e sua plateia, mostrando como o amor passageiro que a última nutre por seus ídolos pode ser um dos responsáveis pelo comportamento de figuras como Norma Desmond. Indo além, é fundamental destacar como esse apontamento dialoga com a adorável relação que é trabalhada entre Gillis e Schaefer, belo paralelo que demonstra que a essência não se encontra na frágil adoração do encanto plástico mas no florescimento de emoções verdadeiras e nos ensinamentos que podem ser extraídos a partir delas.

Usando com grandiosa criatividade dos principais artifícios do cinema noir, “Crepúsculo dos Deuses” é um encantador conto sobre as dificuldades de se produzir algo realmente verdadeiro no cerne do manipulador mundo das celebridades. Traçando fascinantes comparações entre o cinema mudo e o sonoro, o filme constrói um importante diálogo sobre a necessidade de se aliar o novo ao passado, inteligente ao trabalhar tal mensagem justamente ao fazê-lo através da inovação de um antigo gênero cinematográfico. Trazendo um final inesquecível, o longa é um alerta acerca das brutais consequências de se deixar a sétima arte sucumbir à usura e ao arcaico e um clássico que conscientiza sobre o enorme papel que histórias genuínas devem exercer na prevenção desse mal.

Davi Galantier Krasilchik
@davikrasilchik

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