Cinema com Rapadura

OPINIÃO   quinta-feira, 14 de maio de 2020

Tempo de Caça (Netflix, 2020): perseguição sangrenta

Embalada pelo fenômeno “Parasita”, surge mais uma produção sul-coreana eficiente e ambiciosa, que vem cravar seu nome no cinema com muita violência e estilo.

Parasita” é, sem sombra de dúvidas, um divisor de águas na indústria cinematográfica. A obra de Bong Joon Ho fez mundialmente mais dinheiro do que se esperava, agradou a crítica nacional e internacional e saiu do Oscar levando incríveis cinco estatuetas – sendo que a de Melhor Filme era quase impensável devido à postura conservadora dos votantes em relação aos filmes estrangeiros. O sucesso dessa excelente crítica social banhada em humor negro realizada fez com que o mundo abrisse os olhos para o cinema sul-coreano, que é bem verdade esteve sempre aí, mas sem ter a merecida atenção. Natural então que o próximo na linha de sucessão chegasse coberto de expectativas, caso de “Tempo de Caça”. As sessões do longa no 70º Festival de Berlim foram super concorridas e com uma recepção positiva, ele logo foi negociado em vários países, mas, devido à pandemia de Covid-19, os produtores acabaram aceitando uma proposta da Netflix. Ou seja, assistir a este thriller eficiente, repleto de tensão, violência e estilo está a um controle remoto de distância.

Situada num futuro distópico, a trama acompanha quatro jovens de subúrbio – Jun Seok (Lee Jehoon), Jang Ho (Jae-hong Ahn), Ki Hoon (Woo-sik Choi) e Sang Soo (Jung-min Park) -, que, assistindo à crise financeira que acomete o país e sem terem nada a perder, decidem pôr em prática um plano de roubo: assaltar uma casa ilegal de apostas e com o dinheiro fugir para uma ilha vizinha em busca de paz e tranquilidade. O crime dá certo, só que os donos do lugar entram em contato com o misterioso e cruel assassino Han (Hae-soo Park), que começa a perseguir os garotos e promete parar somente quando acabar com cada um deles.

Embora sejam contemporâneos, o roteiro assinado por Sung-hyun Yoon tem poucas semelhanças com a obra de Joon Ho e, por isso, qualquer comparação para termômetro de eficiência deve ser desconsiderada. Como em “Parasita”, “Tempo de Caça” apresenta uma Coreia do Sul que sofre com uma enorme desigualdade social e enxerga os jovens sem perspectivas, os levando a cometer atos ilegais. O ator Woo-sik Choi é outro ponto em comum. Porém, para por aí. Na execução, o recente filme se aproxima mais das ideias de “Mad Max” e “Blade Runner”.

Referenciando esses clássicos do cinema e, principalmente, tomando atitudes corajosas como mesclar subgêneros (distopia/golpe/thriller) de maneira a não perder a identidade, o cineasta constrói uma narrativa visualmente impactante e por tabela apreensiva. Tendo como auxílio a ótima fotografia de Won Geun Lim, um clima distópico é evocado por meio de planos aéreos que observam uma cidade silenciosa e praticamente abandonada. Já nas ruas destruídas e habitadas por marginais, são introduzidos os personagens para que o primeiro ato caminhe para o estilo de filme de golpe. Durante os quase quarenta minutos em que se concentra nessa abordagem, seus conceitos são muito bem aplicados, produzindo basicamente um filme dentro de outro filme. Não se preocupa em correr com a história e dedica espaço suficiente para estudar a personalidade dos garotos – decisão infalível para que o espectador disponha de tempo para criar um laço afetivo com a jornada -, o relacionamento entre eles e a confecção do plano, que mesmo parecendo perfeito tem seu resultado posto em dúvida graças à inexperiência dos envolvidos.

Enquanto tudo parece dar certo e os garotos estão orquestrando sua fuga sem alarde, o enredo insere o caçador Han, que imediatamente mostra sua brutalidade. Ao contrário de outros vilões do gênero, que se perdem em diálogos risíveis e motivações rasas, Han apenas mata. E o faz por esporte. Mais do que isso, se diverte com o jogo de gato e rato desenhado por ele, um assassino de habilidades incomparáveis, cuja simplicidade das ações o torna especial. Em sintonia com sua entrada em cena, a narrativa muda de tom e também de subgênero. O que já foi uma distopia e passou por um filme de golpe, agora surge como um thriller de ação envolvente, registrado novamente com maestria pela fotografia, que cobre planos e sequências com paletas escuras e diversos tons de neon portadores de estilo bem como sentimento de aflição e perigo constante. Tudo isso em meio à ação, capturada com exímio vigor por Sung-hyun Yoo. O diretor demonstra total domínio de seu material, concebendo atmosferas de valor único, como a nervosa sequência dentro do estacionamento que ressalta não só a dinâmica entre os personagens como também a facilidade de gerar tensão.

O ponto negativo está ligado diretamente à edição, em mais uma função exercida pelo cineasta ao lado de Sung-ik Wang. Com pouco mais de duas horas de duração, em alguns momentos fica claro que o longa se estende mais do que o necessário, ainda mais quando usa o mesmo clichê mais de uma vez, caso do carro que insiste em não ligar quando mais precisamos. Pensado para ser uma franquia de ação, alguns pontos deveriam ser enxugados de maneira que a narrativa pudesse se desenvolver com um pouco mais de fluidez. Com um elenco empenhado, roteiro e direção afiados, ação convincente e um design de produção capaz de mergulhar o espectador naquele universo caótico e sem esperança, “Tempo de Caça” faz jus à qualidade do cinema sul-coreano, que vem numa crescente, e desponta como um dos melhores do gênero no ano. Não permita que a barreira do idioma seja um inibidor para assistir a essa ópera do crime envolvente, ambiciosa, sangrenta e esteticamente singular.

Renato Caliman
@renato_caliman

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