Cinema com Rapadura

OPINIÃO   domingo, 26 de abril de 2020

#RapaduraRecomenda – Hellraiser – Renascido do Inferno (1987): um criativo conto slasher

Saído da fértil imaginação de Clive Barker, o filme é uma divertida mistura entre o trash típico dos slashers oitentistas e uma trama repleta de interessantes inovações no gênero.

O britânico Clive Barker sempre se aventurou no lado fantástico da literatura, conhecido pela criação de histórias curtas que o tornaram popular em meados dos anos 1980. Próximo ao sanguinolento e ao assustador, ele acabou encontrando no terror a sua verdadeira especialidade, dedicado ao desenvolvimento de marcantes personagens (entre os quais pode-se apontar o assustador Candyman, assassino que seria imortalizado pelo ator Tony Tood em 1992) que o consagrariam como um dos mestres do gênero. Ciente do potencial de sua coleção de monstros, foi em 1987 que o escritor deu início à inevitável transposição de seus contos para as telonas, escolhendo o aterrorizante Pinhead para inaugurar suas adaptações cinematográficas. Surgiu assim o clássico do horror “Hellraiser – Renascido do Inferno“, obra que conquistou uma legião de fãs ao apresentar uma narrativa original e bastante afastada dos clichês da época.

Ao se mudar para a antiga casa de seu marido Larry (Andrew Robinson), a manipuladora Julia (Clare Higgins) começa a repensar suas escolhas de vida, relutante quanto aos rumos tomados ao lado do parceiro. Desconfortável em relação à nova residência e pouco à vontade com a presença da enteada Kirsty (Ashley Laurence), ela passa a se afastar gradativamente de sua nova família enquanto é atormentada pelas lembranças de um caso extraconjugal, afetada por um erro do passado ao qual secretamente deseja retornar. Tudo piora quando seu amante Frank (Oliver Smith) retorna em busca de ajuda, clamando por auxílio no combate a uma terrível maldição. Perseguido por uma seita de perigosos demônios, ele então se esconde no porão da moradia e convence Julia a realizar ações muito violentas, alegando ser essa a única forma de escapar do inferno.

Saída diretamente da mente de Barker, é essa a bizarra trama que ganha vida nesse exemplar do cinema slasher, popularizado pelo inesquecível “Halloween – A Noite do Terror” em 1978. Sustentadas por serial killers invencíveis e vítimas adolescentes, tais produções explodiram no final da década de 70 ao trazer pequenos orçamentos e um lucro chamativo, não tardando em atingir a saturação de ideias e incontáveis sequências duvidosas. Logo em sua estreia na direção, entretanto, o autor foi capaz de abordagens alternativas, adicionando aspectos inventivos a esse gênero da sétima arte.

Ao estabelecer como protagonista uma mulher adúltera que persiste em manter uma traição, o diretor anuncia desde o início seu interesse em trabalhar a rica temática dos relacionamentos amorosos, adotando para isso caminhos interessantes (e um tanto perturbadores). Explorando Frank como um pervertido sexual, sendo esta a sua motivação para recorrer aos “Cenobitas” – grupo demoníaco que captura masoquistas em troca de prazer -, o longa acaba traçando paralelos entre os diferentes tipos de agonia pelos quais alguns se sentem atraídos. Da dor física provocada pelas provações de Julia à aflição emocional que rodeia Larry e Kirsty, é construída assim uma inteligente narrativa sobre o sofrimento que certos indivíduos estão dispostos a causar, por vezes induzidos a usurpar aquilo que os outros possuem (conforme revela a constante aproximação entre a protagonista e seu amante) pela satisfação que irão sentir perante a desgraça alheia.

Traduzindo de forma bastante alternativa o impulso que motiva alguns dos assassinos mais marcantes da sétima arte – sendo a natureza de figuras como Michael Myers e Freddy Krueger ditada pela simples vontade de espalhar o mal – a produção também constrói marcantes personagens, sejam eles destacados por suas maldades ou por traços de decência. Produzindo alguns dos melhores momentos da obra, a dupla principal determina ótimas mudanças na matança típica, oferecendo um divertido equilíbrio entre caricatura e protagonismo feminino. Se Frank conquista através de um comportamento grotesco e exagerado, alavancado principalmente pelo trabalho de maquiagem presente em torno de sua figura, Julia termina por crescer como uma interessante antagonista, dividida entre o medo de continuar a violência e o amor que sente pelo homem amaldiçoado (conforme bem admnistra a atriz Clare Higgins). Não suficiente, Barker complementa essa elevação da mulher nos slashers – que apesar de não inédita é aqui acrescida de mais camadas – através da gratificante presença de Kirsty, personagem que, através da cativante performance de Ashley Laurence, transita da garota indefesa para a única capaz de resolver a situação. Equilibradas em uma envolvente disputa, apresentam-se assim duas fortes mulheres em lados opostos da moralidade.

Por mais que apresente um roteiro criativo que busque inovar dentro do gênero, é fundamental reconhecer que “Hellraiser” não busca em momento algum se afastar de suas origens, fazendo na realidade um ótimo uso das raízes gore e forçadamente violentas. Exemplos disso são o horripilante design exibido pelas criaturas – entre as quais podemos destacar a do temido Pinhead (Doug Bradley), líder da assustadora gangue que é muito lembrado pelos espectadores – e as sangrentas cenas de tortura, dentre as quais pode se apontar a aflitiva sequência inicial e os assassinatos perpetuados por Julia. Tais aspectos carregam consigo um acertado uso de maquiagem e efeitos práticos. Sendo assim, são construídas passagens que honram o DNA trash do horror da década de 1980, tornando essa uma experiência igualmente agradável aos que estão habituados à “escatologia” dos exemplares da época e aos que buscam algo mais autoral dentro desse formato. Seria injusto ignorar, entretanto, que a exploração da mitologia acerca dos Cenobitas acaba por se exceder em alguns momentos, atropelando o proveitoso relacionamento das características mais “mundanas” com eventos genéricos que diminuem uma sutileza que poderia engrandecer o todo.

Trazendo uma criativa história sobre as dores que relacionamentos problemáticos podem trazer, “Hellraiser” inova o gênero do qual faz parte e se afasta de alguns de seus clichês. Com uma atmosfera oitentista e apresentando um ótimo uso de efeitos práticos, entretanto, o longa não exibe vergonha alguma em se assumir como um slasher, trazendo assim o eficiente equilíbrio entre novidades e diversões trash pelo qual Clive Barker ficou tão conhecido.

Davi Galantier Krasilchik
@davikrasilchik

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