Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sexta-feira, 10 de abril de 2020

One Child Nation (Prime Video, 2019): dossiê contra uma doutrina

Documentário sobre a política de filho único na China fala com pesar sobre a influência do Partido Comunista ao impor um sentimento de culpa e incapacidade em toda uma nação.

Em 1979, a China lançou sua política do filho único. Depois de trinta e seis anos, mais precisamente em 2015, o país deu fim a essa medida. Na época, o Partido Comunista anunciou que fez a sociedade mais forte, as pessoas mais prósperas e o mundo mais pacífico. Na realidade, a questão é muito mais profunda do que o pensamento publicitário. Essa é a proposta de “One Child Nation”: ampliar a discussão sobre o tema tão polêmico. Com produção original da Amazon Studios, as diretoras Nanfu Wang (“I Am Another You”) e Jualing Zhang (“Complicit”) mesclam a obra com propagandas oficiais do governo e depoimentos com opiniões muito distintas.

Narrado em inglês pela própria Nanfu Wang, que agora mora nos Estados Unidos, o documentário se inicia apresentando como a crise populacional chinesa era uma preocupação durante os anos 1970. Quando o país atingiu mais de um bilhão de habitantes, se as famílias tivessem mais de um filho, campanhas governamentais divulgavam que eles passariam fome. No entanto, com menos descendentes, o padrão de vida iria dobrar.

Por meio de fiscais e agentes de planejamento familiar que trabalhavam em todas as vilas, era apresentada uma única proposta para as mulheres na segunda gravidez: esterilização. Caso não a aceitassem, muitas eram sequestradas, amarradas e o aborto era realizado compulsoriamente, usando desculpa de que a insubordinação não seria tolerada.

Para garantir o apoio do povo para a decisão, a propaganda da política de filho único extravasou as mídias e chegou aos muros das vilas, calendários, pôsteres e até lancheiras. Com a ideia no pano de fundo da vida de cada indivíduo, a determinação seria executada com mais facilidade.

Além de dirigir e narrar, a cineasta aparece nas filmagens e coloca a sua trajetória pessoal à disposição da história que quer contar. Sua família queria um menino quando ela nasceu e, até hoje, ela ainda sofre com a preferência do avô pelo seus irmãos. A visão da diretora, mostrando sua vergonha ao ouvir absurdos dos próprios familiares, ajuda a demonstrar como as novas gerações caminham para ter uma outra perspectiva – não apenas relacionada a essa questão específica, mas também quanto a própria atuação do Partido Comunista.

Ao enfocarem a publicidade criada, as diretoras demonstram que a doutrinação do Estado fazia com que os cidadãos imaginassem que o interesse coletivo seria mais importante do que o individual. Sem medo de apresentar a verdade, a obra é explícita ao mostrar fetos descartados como lixo hospitalar. Mesmo em 2011, era possível encontrar recados em muros como “Não engravide ou dê à luz sem permissão”, “Quem recusar a esterilização verá toda a família sofrer” ou “Melhor sangrar do que ter mais um filho”.

A fotografia e os enquadramentos não são as prioridades nesse formato de documentário. As entrevistas buscam apresentar como, até hoje, os indivíduos falam sobre o tema com grande pesar. O maior êxito é o grande trabalho de apuração, expondo diversas vertentes: entrevistas de parteiras, ex-traficantes de pessoas, artistas que trabalham com o assunto, irmãs gêmeas que foram separadas quando crianças, diferentes gerações, entre outros. Aqueles que viveram a conjuntura, no entanto, tem uma opinião que parece ensaiada: “não tínhamos como fazer nada”. O resultado disso é algo pessoal e coletivo ao mesmo tempo.

“One Child Nation” trata a história da política de filho único enquanto revela diversos pontos que permanecem imutáveis: a mulher ainda não tem controle do seu corpo e o livre-arbítrio é livre até a página dois. Na China, o Partido Comunista é o único que pode definir a liberdade. Os anos passam, mas certas doutrinas continuam se apresentando com a ilusão de serem perpétuas.

Fábio Rossini
@FabioRossinii

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