Cinema com Rapadura

OPINIÃO   segunda-feira, 23 de março de 2020

O Hospedeiro (2006): abrigando bodes expiatórios

Partindo de um subgênero já bastante explorado, Bong Joon Ho reinventa o cinema de monstros com uma deliciosa fábula sobre laços familiares e sobre a produção em massa de bodes expiatórios.

Hábil na construção de poderosas análises da sociedade, o diretor Bong Joon Ho quebrou paradigmas com a repercussão de seu premiado “Parasita“. Primeiro cineasta sul-coreano a conquistar o Oscar de Melhor Direção, ele atingiu um alcance internacional através de seu fabuloso conto sobre desigualdades sociais, arquiteto de uma mensagem que, independente da língua, tornou-se universal. Pouco conhecido pelo grande público até a incrível realização, entretanto, é importante pontuar que seu talento não surgiu por mero acaso, tendo rendido uma série de outras produções que se encontram em uma invejável filmografia. É o caso do marcante “O Hospedeiro“, empolgante terror que utiliza um terrível monstro para trabalhar temáticas cruciais.

Filho do dono de uma pequena loja de alimentos, o vendedor Gang-Doo Park (Song Kang-Ho) segue uma vida pacata em Seoul enquanto ajuda o pai Hie-bong (Byun Hee-Bong) às margens do Rio Han. Subestimado por Nam-il (Park Hae-il) e Nam-Joo (Bae Doo-na), irmãos melhor sucedidos que o enxergam como “ovelha-negra”, ele cuida de sua filha Hyun-Seo (Ko A-Sung) e tenta melhorar suas habilidades paternas. Preso a uma cansativa rotina, tudo muda quando uma perigosa criatura emerge das profundezas do rio e captura a menina indefesa, forçando a família a embarcar em uma desesperada tentativa de resgatá-la. É o início de uma alucinante aventura orquestrada da melhor maneira possível por seu idealizador, aqui também responsável pelo roteiro.

Mestre no uso de diferentes gêneros em um mesmo produto, Ho consegue transitar perfeitamente entre o suspense e o humor, transmitindo assim uma experiência que se renova a todo momento. Usufruindo com sucesso da belíssima fotografia de Hyung-ku Kim – trabalho que reforça um clima tenso e sombrio a partir de seus tons cinzentos -, ele constrói sequências de perseguição que, beirando ao primor técnico, misturam planos longos e enquadramentos que ressaltam o perigo envolvendo o ser misterioso. Dessa forma, consegue captar perfeitamente a anatomia e a agilidade do grotesco antagonista – aspectos registrados em efeitos gráficos impressionantes para a sua época – sem comprometer o entendimento da ação em tela. Estabelecendo um ritmo bastante agradável, o diretor é igualmente preciso na inserção de alívios cômicos, momentos nunca gratuitos que permitem ao espectador recuperar o fôlego (sabiamente inseridas após cenas agitadas ou emocionalmente densas). É o caso, por exemplo, da passagem em que um discurso do patriarca da família Park é interrompido pelos roncos de seus três filhos, cena aparentemente boba mas que fortalece os laços do trio em questão.

Indo muito além de uma inegável qualidade estética e do planejamento de boas piadas, o cineasta também se mostra um excelente criador de personalidades, investindo em personagens extremamente bem desenvolvidos. Dono de um enorme carisma, Kang-Ho ganha assim um complexo protagonista, variando com sucesso entre as determinadas investidas pela salvação da filha e os lapsos impostos pelas “limitações” de sua persona (traços que adquirem uma bela justificativa com o desenrolar da trama). Inserido em uma injusta luta contra as autoridades, figuras que paradoxalmente tentam ajudar os cidadãos ao se impor sobre os mesmos, seu Gang-Doo aumenta à medida em que amplifica seu entendimento sobre a situação, tornando-se cada vez mais capaz e transparecendo suas intenções com uma crescente genuinidade.

Paralelamente ao mais irmão mais velho, Ho ainda dedica um satisfatório tratamento aos coadjuvantes, construindo com Nam-il, um empresário infeliz que teve a natureza suprimida, e com Nam-Joo, uma atleta forçada a se contentar com o terceiro lugar, comoventes trajetórias de superação. Estagnadas em suas funções, as figuras são respectivamente recompensadas com a capacidade de fazer algo realmente relevante – aspecto trabalhado a partir do antigo envolvimento de Nam-il com protestos contra o governo – e com a chance de conquistar a medalha de ouro, presentes que acabam refletidos nas lutas contra a criatura. Não suficiente, também merece destaque o fofo personagem de Hee-Bong, ator que executa com extrema sensibilidade o papel de ancião e de “força-cimentadora” entre os membros da família central. Por fim, é fundamental perceber como a vibrante montagem do longa acaba por conectar os arcos de todos os Park, fortalecendo o senso de ligação e o ideal de que estes apenas alcançarão seus objetivos se trabalharem em conjunto

Mesmo que os méritos já apontados tornem a obra bem impactante, não há como negar que a sua principal conquista esteja no sutil subtexto que ela apresenta. Partindo de uma sociedade dominada pelo medo, clima instaurado pelo governo após a divulgação de que entre os sobreviventes do ataque poderiam haver portadores de um vírus vindo da criatura, Ho acaba por denunciar o orgulho que leva representantes mundiais a direcionar sua culpa para os socialmente inferiorizados. Para isso, o cineasta sugere desde o início que a origem da criatura pode estar vinculada ao despejo de toxinas por parte de empresas norte-americanas, denunciando as mazelas deixadas pelos EUA ao redor do mundo. Tem-se assim uma clara crítica ao destrutivo comportamento perpetuado pelo grande líder capitalista, nação que, ao hospedar outros países sob o seu sistema econômico, acaba por gerar falhas estruturais que nem sempre o dinheiro é capaz de suprir. Exemplo disso é a recorrente temática da fome, problema muito ligado ao desdém para com o meio-ambiente e que se expressa na tela como uma sábia maneira de questionar quem é o verdadeiro vilão, por vezes usada como forma de igualar o monstro e alguns cidadãos na busca por comida.

Por fim, basta destacar ainda o grandioso design de produção, refletido em especial nas amplas e sujas galerias de esgoto, e a ótima trilha-sonora, eficiente ao navegar do épico ao dramático conforme é exigido pelo longa. Trazendo uma mistura que poucos diretores sabem administrar, “O Hospedeiro” é uma fascinante obra de criatura que tem muito a dizer. Conduzida por carismáticos e profundos protagonistas, o longa convida o espectador a embarcar em uma jornada repleta de significados, levando-o por um caminho não óbvio e que quebra todas as convenções do gênero. Dono de uma mensagem universal, marca registrada da filmografia de Bong Joon Ho, a obra é uma divertida e fascinante análise sobre uma preocupante habilidade de grandes líderes mundiais: a criação de supostos monstros para os quais transferir sua culpa.

Davi Galantier Krasilchik
@davikrasilchik

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