Cinema com Rapadura

OPINIÃO   quinta-feira, 12 de março de 2020

A Maldição do Espelho (2019): terror amaldiçoado

Incapaz de assustar e beirando o marasmo, esta produção de terror é mais uma evidência de que o cinema russo contemporâneo ainda não entendeu como trabalhar no gênero.

Não é a primeira vez que o terror vindo da Rússia tenta emplacar nos cinemas brasileiros. Trazendo um curioso universo mitológico, muitos projetos buscam transportar conhecidas assombrações do imaginário russo para as telonas, investindo em antigas lendas para assombrar os espectadores. Ao adotar batidas saturadas e cansativos clichês do gênero, tais obras acabam por agregar muito pouco à sétima arte, não sendo uma exceção as poucas que alcançam o Brasil. Dessa forma, sucedendo aos esquecíveis sustos de “A Noiva” e aos inofensivos ataques de “A Sereia” (produções não por acaso feitas pelo mesmo diretor), é chegada a hora do igualmente desastroso “A Maldição do Espelho“, tentativa de Aleksandr Domogarov de explorar outra conhecida figura do misticismo eslavo.

Após perder a mãe em um terrível acidente, a jovem Olya (Angelina Strechina) é obrigada a se mudar para um antigo reformatório ao lado de seu pequeno irmão Artyom (Daniil Izotov). Afetada pela devastadora perda e pela ausência de uma figura paterna, ela começa a afastar o menino – indiferente à dificuldade do mesmo em processar a traumática situação -, e logo busca refúgio na criação de novas amizades. Aproximando-se de colegas duvidosos e cada vez mais distante do garoto indefeso, começa então a presenciar estranhos eventos, atormentada por um assustador espectro que parece perseguir o grupo de adolescentes. Preocupada, ela então descobre que uma terrível maldição paira sobre a residência: a presença da perigosa Rainha de Espadas, espírito enfurecido que fará de tudo para destrui-los. Guiada pela já esgotada ótica das personagens “pouco inteligentes” que resolvem flertar com o sobrenatural, tem-se assim uma premissa condenada ao esquecimento desde sua concepção.

Dividido entre os diferentes ataques da antagonista – momentos que são definidos pela velha fórmula da distorção de desejos, na qual os anseios das figuras centrais acabam sendo usados para a sua perseguição -, o longa abusa de convenções na construção de passagens assustadoras, denunciando a pouco inspirada direção de Domogarov. Munido de risíveis jump scares (recursos que podem ser eficientes nas mãos de um bom cineasta, mas que aqui acabam resumidos a desconfortáveis elevações do som), o diretor até entrega enquadramentos interessantes e que sabem alçar a atmosfera do castelo no qual é ambientada a trama. Em meio a incontáveis repetições, com destaque para o exaustivo uso de poças de água na simulação de “espelhos” (colocando literalmente os espectros como reflexos das vítimas), esses destaques positivos são mínimos, não conseguindo tirar a obra do marasmo que é percorrer os mesmos corredores escuros diversas vezes. Tais momentos, sempre iguais, acabam por refletir o genérico design de produção e o amadorismo técnico, também presente no horroroso CGI dos espectros e uso de sangue falso.

À frente de um fraco roteiro, todavia, Aleksandr não deve ser o único responsabilizado. Ao inserir muitas personagens em uma duração consideravelmente curta, a roteirista Maria Ogneva é incapaz de construir personalidades atrativas e que consigam distanciar os protagonistas dos clichês adolescentes. Por conta disso, a sobrevivência daqueles em tela acaba pouco importando para o espectador, visto que esses só conseguem transmitir traços de estupidez e arrogância. É, por exemplo, o caso de Kirill (Vladislav Konoplyov), jovem com problemas na relação com o pai que “amaldiçoa” diariamente sua madrasta, e de Alisa (Anastasia Talyzina), garota com fortes tentações sexuais e que repudia a própria mãe. Esta dupla odiosa exemplifica perfeitamente o desperdício unânime de figuras com algum potencial e que poderiam trazer interessantes discussões em meio ao suposto terror.

Como se não bastasse, é também perceptível um desenvolvimento pífio da temática central da obra, sendo impossível o envolvimento do público com as transformações da dupla central de irmãos. Meramente uma conveniência para justificar o desenrolar da história, o repúdio que Olya sente por Artyom não recebe maiores e necessárias explicações (as quais poderiam ser facilmente encontradas na exploração da vida que antecedeu o fatídico acidente de carro). Elas são inconvenientemente direcionadas para tenebrosos e expositivos diálogos sobre as assombrações e seus rituais. Como resultado, a redenção da protagonista torna-se completamente esquecível.

Finalmente, resta mencionar que “A Maldição do Espelho” é um produto no qual nem mesmo seus distribuidores confiaram. A prova disso está na inexistência de cópias com o idioma original (com direito a uma dublagem norte-americana que beira a empolgação do Google Tradutor), dificultando a análise das atuações (embora seja claro que seriam insuficientes para a elevação do longa) e minimizando a experiência desde sua estreia nos cinemas brasileiros. Dessa forma, tem-se assim um filme extremamente genérico que é incapaz de construir quaisquer traços de identidade própria, assustando por sua caretice e pelo uso excessivo de clichês. A obra é, por conta disso, mais uma prova de que o cinema de exportação russo ainda não se encontrou no terror, nem ao menos capaz de conquistar o respeito necessário para a preservação das vozes do elenco.

Davi Galantier Krasilchik
@davikrasilchik

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