Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sexta-feira, 24 de janeiro de 2020

Perdi Meu Corpo (Netflix, 2019): peculiar auto-descoberta

Carregado de personalidade, o desenho da Netflix aborda temas comuns de forma bastante original, conquistando com seus visuais e criatividade.

Fonte de meios alternativos na construção de narrativas impactantes, o gênero de animação é um dos mais ricos da sétima arte. Capaz de transportar o público para diversas realidades, a prática permite abordagens jamais possíveis em carne e osso, alimentando a imaginação da criançada pelas telonas. Por vezes, entretanto, os traços animados no computador não miram os mais jovens, restritos aos adultos em narrativas que flertam com temáticas mais filosóficas e fogem ao tradicional. É o caso do peculiar “Perdi Meu Corpo“, original Netflix indicado ao Oscar 2020 que traz uma mão decepada como uma das protagonistas.

Órfão desde a infância, o francês Naoufel (voz de Hakim Faris) é dono de uma vida difícil e do membro em questão. Preso a uma entediante rotina como entregador de pizzas e inerte a sua família adotiva, ele tenta fugir da solidão ao conhecer a misteriosa Gabrielle (Victoire Du Bois), moça pela qual fica perdidamente apaixonado. Tudo muda, entretanto, quando um brutal acontecimento – inicialmente mantido em segredo para aguçar a curiosidade – o separa da outra figura central, iniciando uma excêntrica jornada de auto-descobrimento.

Escrito e dirigido pelo estreante Jéréme Clapin, o longa investe na construção de trajetórias paralelas, alternando as tentativas de uma mão consciente (elemento digno de um conto de horror) em reencontrar seu corpo com as investidas de um garoto na conquista de sua paixão e de seu propósito. Para tal, a produção se beneficia em grande escala da deliciosa montagem de Benjamin Massoubre, trabalho que garante um ritmo dinâmico e torna complementares os dois arcos de superação.

Embora tenham igual valor reflexivo, não há como negar que as passagens envolvendo a parte desmembrada são as mais cativantes. Feitos com um refinamento estético impressionante, os desafios sequencialmente impostos àquela que se locomove por cinco dedos são extremamente criativos, compondo com variedade uma cidade bastante viva. Dos túneis de metrô infestados por ratos raivosos ao passeio de guarda-chuva pelos céus da França, a persistência e a sabedoria com as quais a figura encontra soluções também é um elemento encantador, afinal de contas, é ele que torna a figura carismática e faz quem a acompanha torcer por ela. Como se não bastasse, é interessante observar, ainda, como essa viagem transparece a universalidade das temáticas tratadas pela obra, reflexo que se dá através das demais mãos presentes na tela. Sempre voltadas a situações banais, tais como o esticar de braços de um bebê, uma chamada telefônica ou o grafitar de uma parede, esses símbolos representam como o tato é comum a todos. Sendo assim, ele é traduzido como ferramenta na descoberta do mundo, fundamental na exploração física do que permeia o homem e na busca por seu objetivo.

Não suficiente, esse representante dos cinco sentidos humanos ganha uma profundidade ainda maior através da melancólica história do jovem Naoufel. Filho de pais musicistas, ele cresceu praticando piano, embora seus sonhos de criança lhe dissessem para ser astronauta. Após perdê-los, permanece alheio a sua verdadeira vocação, preso a uma triste vida. Ao conhecer Gabrielle e passar pelo fatídico desmembramento, passa a revisitar suas memórias – ditando as agradáveis transições entre passado e presente que constituem o outro lado da obra – e questionar o que pode alcançar com seu livre-arbítrio.

Liberto da função que os responsáveis tanto cultivaram durante a infância (transformação que o afeta tanto para o bem quanto para o mal), ele vai da insegurança à percepção da capacidade de “driblar o destino”, conceito que é explorado em um dos diálogos mais marcantes entre o rapaz e a garota. Por conta disso, a metáfora do tato ganha maior complexidade não só pelo reconhecimento da relação deste com outros sentidos humanos (visto, por exemplo, que é necessário o toque para produzir o som que sai dos pianos), como também de como sua perda pode ser superada (sendo o desmembramento uma clara analogia à morte dos pais de Naoufel).

Embora cheias de significado por si só, é claro que a verdadeira contemplação dessas mensagens só se dá pela junção das duas narrativas, entre as quais percebe-se notáveis diálogos. É o caso, por exemplo, da belíssima passagem em que um senhor cego dedilha com primor seu teclado, produzindo sinfonias que refletem um claro triunfo sobre a falta de visão através do tato e da audição – e que simboliza magistralmente a transformação do garoto apaixonado.

Mesmo permeado por qualidades, a obra não é perfeita, conforme denuncia a falta de originalidade por trás do relacionamento amoroso presente em tela. Cheio de clichês, este acaba servindo apenas como artifício na movimentação da trama, descrição que pode ser igualmente aplicada à Gabrielle, personagem que carece de um maior desenvolvimento. Além disso, a conclusão do longa deixa a desejar, impressão que é deixada pela decisão do roteiro em priorizar a simbologia da sequência final, que mesmo bonita não faz jus ao potencial da trama.

Feito com extraordinário primor visual, “Perdi Meu Corpo” é uma investida da Netflix no campo das animações carregada de personalidade. Ao tratar de temas recorrentes de forma extremamente única, o desenho vai além do lugar-comum e demonstra muito carisma. Por conta disso, deve reativar a vontade adulta de desbravar o mundo a partir dos cinco sentidos.

Davi Galantier Krasilchik
@davikrasilchik

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