Cinema com Rapadura

OPINIÃO   quinta-feira, 16 de janeiro de 2020

Retrato de uma Jovem em Chamas (2019): belíssimo culto à feminilidade

Ao buscar construir um audacioso romance, drama francês alcança altos patamares de narrativa e beleza estética abordando o feminino como tema central.

Retrato de uma Jovem em Chamas” é o quarto longa-metragem da diretora francesa Céline Sciamma e representa a evolução de uma já excelente filmografia dedicada ao universo feminino. Suas obras anteriores, “Lírios d’Água“, “Tomboy” e “Garotas“, possuem como tema em comum a relação entre maturidade e sexualidade. Em seu novo trabalho, ao apresentar mulheres adultas como protagonistas e posicionar o drama no século XVIII, a cineasta propõe um novo estágio de estudo entregando um nível estético e vigor romântico que ainda não haviam sido explorados em sua carreira.

Acompanha-se quatro personagens: Marianne (Noémie Merlant) é uma pintora contratada por uma senhora condessa (Valeria Golino) para fazer um retrato de sua filha, Héloïse (Adèle Haenel). Na casa isolada em uma ilha francesa e cuidada pela jovem criada Sophie (Luàna Bajrami), a artista descobre que a atividade não será tão fácil quanto deveria. Como forma de resistência a um casamento arranjado pela mãe, Héloïse se recusa a ter um quadro seu pintado. Marianne precisa então esconder suas intenções para conseguir realizar a pintura sem que a mulher retratada descubra.

A partir da pintora, a diretora nos convida a observar suas personagens, como quem silenciosamente analisa musas para representá-las em quadros. É o que fica sugerido na primeiríssima cena e sinalizado no primoroso desenrolar do roteiro igualmente escrito por Céline. A proposta nasce como um desafio para si – como contar uma intensa história sem se apoiar demais na palavra falada – e também um chamado audacioso para os espectadores se aproximarem e refletirem sobre o que veem. O conflito entre o visto e o pensado, o que se passa na tela e o que sentem aquelas figuras, é bem-vindo e esperado pelo conto, que inclusive deixa essas diferenças acontecerem mais de uma vez entre Marianne e Héloïse. Esse jogo permite que o filme aconteça tanto na tela quanto na cabeça do público, que através da empatia inevitavelmente completa o não dito.

Por outro lado, o que realmente fisga a atração do espectador é a maneira que uma curiosidade natural é construída cena após cena. Constantemente se espera o que acontecerá em seguida ou uma resposta para uma questão recém levantada pelo roteiro. Quando nos damos conta, estamos no meio de um fortuito romance cuja intensidade fala mais sobre o reflexo de identidade entre as mulheres que sobre desejo carnal. Visto que o filme aborda vários elementos relacionados à feminilidade, como sororidade e maternidade, e não somente sexualidade, a inevitável explosão de sentimentos pode ser vista também como fruto da necessidade por liberdade – assunto que cruza tempo e contexto para conversar com a atualidade. É mais uma beleza dessa obra que, assim como “Adoráveis Mulheres” de Greta Gerwig, propõe falar sobre o presente através de uma história definida no passado.

Falando em beleza, ao escolher utilizar a arte da pintura como pano de fundo, a produção também atrai para si uma responsabilidade estética, que não é só brilhantemente construída pela fotógrafa Claire Mathon (“Atlantique“), como exerce função narrativa. A iluminação das cenas ao lado da cenografia minimalista destaca as atrizes de tal forma que as enxergamos assim como avaliamos os personagens de um quadro pintado. Cada nuance de interpretação é ressaltada por essa fotografia e pela raridade da trilha sonora como pontuação emotiva. Esteticamente, todo o filme é construído para amplificar a experiência observatória do público e acaba por engrandecer o que já era destacado pelo roteiro e suas atuações.

Vale comentar a natureza pessoal do projeto, uma vez que a atriz que interpreta a musa, Adèle Haenel, foi parceira de Céline por muitos anos até logo antes desse longa. Isso sugere que parte da inspiração de um trabalho tão sensível tenha nascido do relacionamento, fazendo com que o se vê em tela seja ainda mais intrigante e próximo de sentimentos reais. Ademais, “Retrato de uma Jovem em Chamas” é um audacioso passo adiante na filmografia da cineasta, que pela temática recorrente demonstra uma inquietação típica dos melhores artistas. Tem-se então o ápice de uma carreira ainda em progresso e, acima de tudo, uma obra excepcional.

William Sousa
@williamsousa

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