Cinema com Rapadura

OPINIÃO   domingo, 29 de dezembro de 2019

Dezessete (Netflix, 2019): viagem para a reaproximação

Road movie promete conquistar o espectador com sua abordagem honesta e sensível acerca de temáticas cativantes.

Passam-se os anos e a tecnologia continua a surpreender a sétima arte com suas pirotecnias, efeitos especiais, 4D, VR, entre outros recursos. Só que em tempos de técnicas de rejuvenescimento 100% digital, narrativas realistas e bem contadas ainda encantam o público, mesmo que em menor escala. O que nos leva a “Dezessete“, filme exclusivo que pode ser encontrado se você cavar o diversificado e bombado catálogo da Netflix. Essa produção espanhola, confeccionada com toda a naturalidade possível, abstém-se de quaisquer malabarismos cinematográficos e, focando na análise densa e sensível da relação entre dois irmãos muito diferentes e munidos de conflitos – oriundos do passado e trazidos para o presente -, mostra-se capaz de capturar a atenção da audiência que busca um filme afetivo, pautado em sentimentos, pé no chão e mesmo assim reflexivo.

A história acompanha Héctor (Biel Montoro), um adolescente de dezessete anos que, após seguidos atos de rebeldia, é denunciado pelo irmão Ismael (Nacho Sánchez) ao juizado de menores e assim levado a uma penitenciária juvenil. Lá, fica junto a outros garotos que também sofrem para se estabelecerem na sociedade e encontra o amigo que nunca teve fora da prisão, através de um processo terapêutico com cães abandonados à espera de adoção: Ovelha, um cachorro nada sociável por quem cria uma amizade, que intensifica a cada novo encontro. No entanto, quando Ovelha é enfim adotado por uma família, Héctor, prestes a fazer aniversário, entra em choque e foge do cárcere a fim de recuperar o seu cachorro. Para encarar essa jornada, conta com o auxílio do irmão mais velho, da companhia da avó acamada e de um novo cão de três patas.

Escondida atrás de uma premissa superficial e de certa maneira ‘bobinha’ à primeira vista, a narrativa introduz uma série de questões significativas e as discute com extrema sutileza e inteligência sem cair em pieguices. Delinquência, a convivência num cenário desfavorável dentro de uma penitenciária juvenil, as dificuldades em se adequar à sociedade, problemas familiares e, por fim, maus tratos aos animais, seguido por adoção destes e cão terapia. Essa última temática – inicialmente utilizada como subtexto pelo roteiro de Daniel Sánchez Arévalo e Araceli Sánchez -, vai ganhando destaque natural (também por conta dos cachorros carismáticos em cena) e, intensificada com muita habilidade, serve de suporte para a dinâmica dos personagens centrais, exercendo grande influência sobre a trajetória dos complexos irmãos Ismael e Hector.

As composições de Biel Montoro e Nacho Sánchez são cruciais para a produção, assim como para seu tom. A partir de um texto bem escrito, levam à tela a complexidade de suas figuras com leveza e graciosidade. O primeiro exibe uma atuação tocante do menino, que, devido às circunstâncias da vida, precisou amadurecer rapidamente (note, por exemplo, como parece não entender o descomplicado significado de ironia, enquanto, por outro lado sabe de cor e salteado os parágrafos da constituição). Ele explora as camadas de seu personagem e as domina, fazendo com que sua teimosia não irrite, a astúcia empolgue e o impulso se torne compreensível. Contrapondo-se a ele, surge o outro ator com sua uma criação igualmente rica, contida e cheia de conflitos. Dessa contradição formada pelos dois, surge uma interação que transcende a tela e cativa o público.

Responsável pela direção, o espanhol Daniel Sánchez Arévalo consegue extrair o melhor de cada sequência e sem a necessidade de estardalhaços, transformando situações corriqueiras em momentos de reflexão e amor genuíno (no terceiro ato, há uma cena em que Ismael olha mensagens telefônicas trocadas com a ex que exemplifica bem o quão sensível é a direção e o tamanho da sinergia com o roteiro). Pensado também nos detalhes, a trilha sonora acústica, que alterna entre os acordes de um violão – ora diegético ora não-diegético -, e os sons de um piano, reforça ainda mais o senso de fraternidade, carinho e simplicidade da narrativa. Por sua vez, ela é montada de maneira ágil como pede um bom road movie. “Dezessete” está aí, pronto para te fazer relaxar e simpatizar a bordo de uma van, na companhia de duas figuras distintas que se completam e que exibem uma dinâmica feroz sobre amor, admiração, vitórias, derrotas, cães e irmãos.

Renato Caliman
@renato_caliman

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