Cinema com Rapadura

OPINIÃO   segunda-feira, 30 de dezembro de 2019

Quem Matou Garrett Phillips? (HBO, 2019): história poderosa da vida real

HBO continua a tradição de documentários de forte linha social, agora com um projeto sobre as consequências da morte do menino Garrett Phillips em 2011.

Em 2011, na pequena comunidade de Potsdam no estado norte-americano de Ohio, moradores de um apartamento se sobressaltaram com sons estranhos em uma das residências. Após o chamado por ajuda e a abertura forçada de uma porta, constatou-se que o menino Garrett Phillips de doze anos morria asfixiado e precisava de socorro urgentemente. Por mais que os guardas e os médicos se mobilizassem, não foi possível salvar essa vida vítima de um crime misterioso. O documentário “Quem Matou Garrett Phillips?“, produzido pela HBO, aborda as enigmáticas circunstâncias do assassinato enquanto também levanta questões sociais mais amplas sobre racismo e sistema judicial, em razão do principal suspeito para a polícia ser o ex-namorado da mãe do garoto, o técnico de futebol negro Oral “Nick” Hillary.

Não é a primeira vez que a HBO se debruça sobre projetos com conotação social a partir de episódios espinhosos. Já foram feitos “No Coração do Ouro – O Escândalo da Seleção Americana de Ginástica” e “Deixando Neverland“, ambos explorando abuso sexual e pedofilia. O mais recente documentário fica a cargo de Liz Garbus (“A Dangerous Son“) e segue a mesma direção, dividindo-se em duas partes: a primeira interessada pela investigação do caso que definiu aquele sujeito como único assassino em potencial, enquanto a segunda, pelo julgamento e pelos desdobramentos a longo prazo para todos os envolvidos.

A narrativa, inicialmente, se apresenta como algo tradicional: depoimentos de familiares ou outras pessoas relacionadas a Garrett, de vizinhos e autoridades; imagens de arquivo referentes à repercussão do homicídio e da sua averiguação; e cartelas informativas na tela organizando os dados conhecidos e os registros da imprensa. Tudo isso interliga cada passagem da história e orienta o público dentro do incidente. Desse modo, a primeira parte é parcialmente ilustrativa e didática porque os relatos em off são confirmados pelo que se vê nas cenas, como quando afirma-se que a busca imediata por vestígios no local seria crucial, entremeando-se por trechos que mostram os técnicos coletando provas. O estilo escolhido não é comprometedor, já que serve ao propósito de levar quem assiste para dentro do mistério, o que exige conhecer os detalhes e a cronologia dos eventos – nesse sentido, as ligações entre os policiais são exibidos através de um esquema gráfico, e a passagem dos acontecimentos a cada minuto é assinalada por uma linha do tempo.

Ademais, os testemunhos são selecionados de maneira a promover um encadeamento narrativo que desenvolva temáticas abrangentes. A partir dos vizinhos e das gravações de conversas dos policiais, é mostrada a descoberta do crime e os primeiros passos para salvar a criança e elucidar o que havia ocorrido. Graças aos parentes da vítima (mãe e tio), a outro ex-namorado e também xerife local, e aos demais guardas, Nick é acusado. Quanto ao próprio suspeito, seus amigos e jornalistas da área as injustiças sofridas pelo homem são expostas. Em relação a esse último ponto, o filme enumera os problemas da acusação devido à falta de evidências conclusivas, à dependência de um argumento frágil baseado na suposta relação ruim com o menino e ao tratamento abusivo praticado na delegacia – situações que revelam o racismo daquela comunidade, também indicado nas referências ao preconceito encontradas pela documentarista no cotidiano de Potsdam.

No segundo segmento, são apresentados os efeitos do assassinato na cidade e nas partes envolvidas: placas com os dizeres “Justiça para Garrett”; a família incansável lutando pela punição do responsável e acreditando ser Nick, ao mesmo tempo que precisa seguir na criação das outras crianças; e a vida radicalmente alterada do réu por ser considerado culpado pelos habitantes antes do julgamento, preso previamente quando a procuradoria formula a acusação, perder o emprego e cuidar integralmente dos filhos se preocupando com seus sentimentos. O estilo de direção de Liz Garbus muda ligeiramente e constrói sequências observativas em que a câmera segue o cotidiano do técnico de futebol em casa ou a equipe de defesa preparando estratégias. Em tais passagens, não há entrevistas ou informações escritas em tela, mas somente indivíduos interagindo entre si e cumprindo seus afazeres.

Acompanhar os desdobramentos tão complexos do caso faz com que a documentarista mergulhe a narrativa dentro de um longo processo. A seleção de repórteres que cobriram o delito, de registro das redes sociais e de planos panorâmicos de Potsdam permitem ao roteiro explorar também problemáticas que extrapolam as visões iniciais. A aparência de acolhimento de uma comunidade em que todos praticamente se conhecem oculta uma intolerância, evidenciada pelas homenagens aos Confederados da Guerra de Secessão e pelos agressivos comentários na Internet. O uso da mídias digitais serve para espalhar boatos falsos. A repercussão do incidente ganha outros locais próximos com grande velocidade. Nem todos os aspectos são trabalhados detidamente (como a tecnologia nos dias atuais), porém tem alguma menção relativa à trama principal.

Outro mérito da cineasta foi seguir o desenrolar jurídico da ação movida por Nick contra Potsdam e, consequentemente, a decisão judicial quanto à sua inocência ou não. Vemos o homem sendo provisoriamente detido duas vezes e muitos momentos do julgamento retratados longamente. São nessas passagens que se percebe como a produção humaniza a acusação (familiares, advogados, policiais) e a defesa (Nick, amigos e seus próprios defensores) ao ouvir cada declaração sem fazer um juízo de valor definitivo: reconhece-se a dor das vítimas sem descartar a violência e as injustiças sofridas do denunciado. Ao invés de buscar apenas responsabilidades individuais, o roteiro atinge sistemas ou problemas sociais amplos, como o preconceito racial, a inépcia da polícia e os interesses políticos das procuradoras.

“Quem Matou Garrett Phillips” tem mais de três horas divididas em duas partes e trabalhadas a seu favor por muitas razões. É uma longa duração concebida para tratar de adversidades da sociedade norte-americana e também sem se esquecer da tentativa de descobrir o assassino; para criar um ritmo contagiante que faz o espectador se interessar por um enredo delicado e manter a atenção nos diferentes recursos visuais inseridos; e, por fim, para entrelaçar mistérios e drama num filme que convida para tentar solucionar o crime e sentir sofrimentos tão reais.

Ygor Pires
@YgorPiresM

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