Cinema com Rapadura

OPINIÃO   terça-feira, 31 de dezembro de 2019

Indianara (2019): uma figura de resistência

Mostrando uma parte da trajetória da ativista dos direitos transexuais que dá nome ao documentário, “Indianara” consegue prender a audiência através de uma narrativa bem montada e extremamente relevante.

A cada dia que passa, a população LGBTQI+ está mais ciente dos direitos que ainda precisa conquistar (e em certos casos, manter) e se tornando mais vocal e determinada a conquistá-los. É nesse cenário que surge o documentário “Indianara”, sobre a grande ativista dos direitos das transexuais no Brasil que dá nome à obra.

Com uma narrativa montada no estilo observativo, onde aqueles que estão sendo filmados não dão entrevista e ignoram a presença dos cineastas, a obra de Aude Chevalier-Beaumel e Marcello Barbosa acompanha a vida de Indianara entre 2017 e 2018. Com um início forte, que mostra um grupo de transexuais junto com a protagonista no enterro de uma amiga que está sendo enterrada como indigente, a mesma, enquanto aponta para os túmulos, fala: “Olha como termina. Tanto ódio, tanto preconceito pra no final acabar assim”. Desde o início o filme nos prepara, deixando a audiência ciente de que vai presenciar a abordagem de temas pesados e que nem sempre são discutidos com naturalidade por causa de todo o tabu ao redor deles.

Acompanhamos o dia a dia de uma das coordenadoras e porta voz da Casa Nem, centro de apoio sem fins lucrativos a pessoas transgênero, transexuais e travestis (ou aqueles que façam parte da sigla LGBTQI+ e estejam em situação de vulnerabilidade), que é mantida com a ajuda de diversas organizações, e a vemos enquanto usa seu jogo de cintura para lidar com os trâmites de gerir os moradores da casa e para mantê-la funcionando, além de se manter uma figura presente no congresso.

No início do documentário vamos acompanhando sua presença em diversos protestos e eventos. Em um dos protestos “Fora Temer”, uma de suas apoiadoras nota que ninguém ainda a deixou falar. Várias outras pessoas do movimento falaram sobre os direitos LGBTQI+ enquanto ela, uma figura que mais do que ninguém entende do assunto, tem que lutar até para conseguir acesso ao microfone. E quando consegue, faz questão de frisar que os outros oradores, apesar de citarem os direitos de lésbicas e gays, não falaram da causa trans nos seus discursos. É necessário lutar até mesmo dentro de um ambiente que deveria ser acolhedor.

Na Casa Nem, festas são dadas onde ao mesmo tempo que se divertem, decidem pautas que deverão ser tratadas dentro da casa e em situações políticas. Por conta da estrutura do documentário, é fascinante ver esses momentos na íntegra e sem a inclusão de um entrevistador, que poderia tirar a imersão da narrativa. O documentário também não se exclui de mostrar os conflitos internos da casa, sejam brigas entre aqueles que moram lá ou conflitos de gerenciamento que Indianara tem de resolver com outros coordenadores. Em certo momento, vemos até que a casa disponibiliza aulas para as transexuais e travestis que ainda são analfabetas. Apesar de defender também os direitos das prostitutas com afinco, a organização se esforça para tentar dar uma vida melhor àquelas mulheres.

Uma figura muito presente na luta de Indianara por mais direitos era Marielle Franco. Acompanhamos como ela era uma das poucas pessoas dentro do cenário político do Rio de Janeiro que defendia os direitos de pessoas transexuais com todas as letras, e como sua figura era importante para os habitantes da casa e para Indianara. É melancólico assistir um de seus discursos fervorosos já sabendo o que aconteceu em seguida. A morte de Marielle foi um grande marco na vida da protagonista, e traz um dos momentos mais sombrios do documentário.

Com o filme, conseguimos cada vez mais colocar em perspectiva quantos anos de luta ela já tem, e como é admirável que ela ainda esteja fazendo esse trabalho. E se torna fácil entender sua frustração por ainda estar lutando por direitos básicos. O documentário também nos apresenta uma visão intimista do relacionamento de Indianara com seu parceiro, e apesar de ser interessante acompanhar o dia a dia dela com o esposo, a narrativa brilha mais quando foca no seu tema central. Algumas situações também são montadas claramente para causar desenrolamentos interessantes para o filme (como uma parte onde vemos a protagonista revirando suas memórias), porém em nenhum momento elas parecem forçadas ou fora de contexto.

Apesar de não conter trilha sonora durante quase toda a sua duração, o filme utiliza-se de trilha em alguns momentos, como quando retrata a morte de Marielle e no dia das eleições de 2018. A música pode surpreender no começo, porém funciona em ambos os momentos por serem marcos muito grandes na vida da protagonista. Sentimos o peso das duras derrotas que ela teve que enfrentar em tão pouco tempo.

Tratando temas como identidade de gênero, estigma contra AIDS e, obviamente, a vida das pessoas transexuais no Brasil sem pudores, “Indianara” se mostra indispensável para quem quiser se educar mais sobre o tema, já conhecendo a personagem principal ou não. Como uma das moradoras da casa diz, “você ensinou resistência para todos nós”. E essa resistência não será esquecida.

Lívia Almeida
@livvvalmeida

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