Cinema com Rapadura

OPINIÃO   quinta-feira, 31 de outubro de 2019

Possuída (2000): relações fraternais

As trajetórias de desenvolvimento sexual e emocional das irmãs Ginger e Brigitte são as bases para uma história de terror mais significativa do que aparenta à primeira vista.

O gore é um estilo de terror em que se cria o choque através de imagens gráficas contendo violência, muito sangue e vísceras. Por conta dessas características, ele ainda costuma ser desvalorizado no meio cinematográfico como se fosse uma apelação vazia. Contudo, “Possuída” mostra o oposto de uma concepção apressada e precoce: o grafismo é utilizado dentro de uma história de lobisomem para abordar as relações familiares e levantar questões como morte, amadurecimento sexual e individualidade.

As personagens centrais sob as quais a narrativa gira em torno são Ginger (Katharine Isabelle) e Brigitte (Emily Perkins), duas jovens irmãs outsiders na escola e distantes da família. Na noite de sua primeira menstruação, Ginger é atacada por uma criatura selvagem que vinha matando cães da vizinhança. Ela sobrevive e se recupera dos ferimentos, mas algo mexe radicalmente com seu corpo e sua personalidade. Desse modo, Brigitte precisa salvá-la do estranho risco que corre e ainda se proteger.

Como o diretor John Fawcett e a roteirista Karen Walton estabelecem a unidade dramática do filme em torno dos vínculos fraternais, a conexão das irmãs logo é apresentada e destacada como isolada do mundo. A questão da morte é um exemplo representativo: a sociedade parece naturalizá-la quando os cachorros aparecem desmembrados pela “besta de Bailey Downs” – uma mulher se desespera com o fato em sua casa e grita por ajuda, porém as crianças na rua continuam brincando sem se espantarem; já Ginger e Brigitte possuem um pacto em que seus falecimentos precisam ser “fantásticos” e chamar a atenção de todos, assim como simulam seus próprios assassinatos de forma incomum. Tal idealização feita pelas protagonistas começa a separá-las das demais pessoas.

A separação prossegue por escolha das próprias personagens, que se esforçam para se diferenciar das colegas de colégio: elas consideram patéticos os interesses sexuais e fúteis, as preocupações com a aparência e com as posses materiais. Além disso, não se identificam com os pais ausentes, desinteressados ou deslumbrados pelas mudanças hormonais das filhas. Nesse sentido, buscam seu próprio lugar no mundo, desconsiderando a puberdade (estão, inclusive, com menstruação atrasada) e criando suas identidades particulares (usam roupas e adereços góticos ou de cores escuras e de tamanhos largos, bem como dividem um quarto desorganizado que remete a um interesse mórbido devido à luz roxa predominante e aos objetos cenográficos sombrios).

Quando a trama chega ao seu conflito básico, a relação entre as irmãs é reformulada. O ataque do monstro redireciona seus arcos e o estilo da obra por introduzir o gore nos novos desafios que abalam a trajetória das jovens: o subgênero se aplica tanto na brutalidade dos assassinatos com sangue em abundância e partes desmembradas de corpos quanto nas transformações físicas de Ginger, como deformidades nas vértebras e no semblante. A filmagem das sequências mais violentas também se modifica, deixando de lado o realismo anterior para uma estilização com movimentos de câmera na mão e cortes rápidos durante os angustiantes ataques e slow motion para as cenas da aparição de uma nova Ginger.

Por consequência, a licantropia afeta as protagonistas de modos distintos. A irmã mais velha tenta resistir ao que acontece a ela, escondendo os sintomas e demonstrando aflição diante de seu estado, porém não evita a erotização que passa a ter – uma metáfora construída a partir da aproximação entre alterações corporais monstruosas e o desabrochar sexual após um período de repressão voluntária – nem o desenvolvimento das deformações. Já a irmã mais nova continua muito próxima, primeiro lutando para proteger e curar sua parente e depois se sacrificando para manter os laços fraternais mesmo com atitudes extremas – seu arco dramático a faz buscar sua individualidade e repensar a relação nada sadia com Ginger, caracterizada pelo pacto entre elas, pelas semelhanças de personalidade e aparência e pelos momentos em que não se desgrudam como se estivessem fisicamente ligadas.

Não seria possível abordar tais temas ou desenvolver a narrativa sem uma articulação entre as convenções do terror e uma estrutura dramática. Há o horror explícito enquadrado com destaque pelo diretor e também recursos visuais que evidenciam as oscilações emocionais do roteiro, entre eles, a iluminação de tons roxos no quarto das irmãs e vermelhos no rosto de Ginger quando ela está mais ameaçadora. Existem também ângulos de planos que reforçam o choque da violência, através de rápidos zoom-ins, e a vulnerabilidade das vítimas, através de planos inclinados.

Diante da proposta assumida pelo filme, nada mais justo do que encerrá-lo em um ambiente comum para as duas irmãs. “Possuída” segue por uma abordagem de terror que se une a uma história sobre convivência fraternal e oferece as possibilidades dramatúrgicas de ambas as dimensões. Na sequência final, o horror é resolvido de maneira fantástica e a conclusão da jornada de Brigitte é alcançada graças ao desejo pela vida e à percepção de sua identidade específica. Um desfecho expressivo para ser, ao mesmo tempo, amoroso, trágico e melancólico.

Ygor Pires
@YgorPiresM

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