Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sábado, 02 de novembro de 2019

Cara x Cara (Netflix, 2019): dramédia fast-food

Apostando na desenvoltura de Paul Rudd interpretando dois personagens e na rapidez de seus episódios, dramédia da Netflix aborda clonagem, relações estremecidas e insatisfação no trabalho de maneira agridoce.

A simples premissa de colocar Paul Rudd para contracenar com o mesmo Paul Rudd sugere uma daquelas comédias de provocar soluço. No entanto, é bom alertar o espectador – ávido por algumas risadas após horas buscando a próxima sessão pipoca na Netflix -, que “Cara x Cara” tem sim seus momentos de graça, sendo a maioria deles resultado do excelente timing cômico do ator e a dinâmica com o seu outro eu, mas é o drama que se destaca na série. Por trás de seu enunciado divertido, o criador Timothy Greenberg (ex-produtor do programa de entrevistas “The Daily Show”) apresenta um texto levemente reflexivo que, embora resista aos clichês, ganha ao estabelecer uma linguagem própria e conta com o talento de seu protagonista, hábil em transitar de um tom para o outro, para promover um passatempo agridoce satisfatório e de fácil consumo.

Dirigida pelos recorrentes colaboradores Jonathan Dayton e Valerie Faris (“A Guerra dos Sexos” e “Pequena Miss Sunshine”) com base em um argumento de Timothy Greenberg, esse original Netflix nos apresenta a Miles Elliot, um publicitário em crise que, aconselhado por um colega de trabalho, vai a um spa passar por um tratamento experimental que promete melhorar o seu DNA e fazê-lo sentir-se renovado. O problema é que o procedimento não sai conforme o determinado e após despertar de um sono profundo, o velho Miles se depara com um mundo no qual tem que lutar pelo seu emprego, seu casamento e contra um novo, estimulado e amigável Miles. Abordar a relação entre um ser humano e seu clone não é uma ideia original (até novela brasileira fez isso!), e se por um lado isso enfraquece a narrativa, ela ganha com a presença de cena de um ator que exerce dupla função com um pé nas costas.

Objetiva, ágil e com pouco mais de quatro horas de duração, bem divididas em oito episódios, a série conta com direção apurada de Dayton e Faris, realizadores cuja experiência com filmes equilibrados entre o drama e a comédia resulta em uma condução eficiente, criativa e pautada pela sensibilidade. Eles são um ponto importante para manter a narrativa em um eixo em que a ficção não pareça absurda demais, o riso soe espontâneo e os conflitos facilmente relacionados com o cotidiano. Além disso, mesmo com tantos avanços tecnológicos, uma produção como essa não costuma gozar de muitas vantagens e é aí que entra a criatividade da dupla, notável ao longo da trama, filmando Miles e seu clone de uma maneira que não seja possível perceber a diferença quando existe um dublê em cena. A coreografia aliada à tecnologia recebe bastante atenção da câmera esperta de seus sensatos guias.

Reforçando tecnicamente a narrativa está a coerência na divisão de episódios amarrados pela montagem. Se por um lado o argumento evidencia carência de ideias, nesse quesito, comandado por Jesse Gordon (“Unbreakable Kimmy Schmidt”), a série dispõe de uma linguagem descontraída e fora do convencional, expandindo a visão para além do personagem central. Se em no primeiro capítulo descobrimos as razões que levaram o ‘velho Miles’ a um estranho SPA a fim de mudar sua vida, no segundo, o espectador é levado a entender os conflitos e desejos do clone, e dessa forma, contada por dois personagens, a trama avança com fluidez e frescor. Vale ressaltar que em uma decisão interessante, a produção ‘escapa’ dos protagonistas para dedicar todo o quinto episódio a esposa Kate (Aisling Bea), um ponte bem construída entre os Miles, e que poderia ter sido mais explorada pelo roteiro.

Ao contrário da ótima atuação de Paul Rudd e a química gostosa com sua parceira de cena, o resto dos coadjuvantes não oferece nenhuma novidade ou conflito que mereça atenção. Após introduzidos, são prontamente descartados, ou por suas figuras dispensáveis ou pela falta de aproveitamento por parte do roteiro, vide Dan (Desmin Borges), figura que tem características para causar na vida de Miles, porém que não é capaz de preencher a função de colega de trabalho ou também de rival de Miles com êxito. Acompanha o desenvolvimento, a batida techno composta por Anna Meredith (“Oitava Série”), que evoca a sensação futurista da ficção científica e funciona como um termômetro, indicando ansiedade, tristeza e urgência. Ao final, “Cara x Cara” é como um fast-food: genérico, saboroso e de fácil ingestão. Sente a falta de um roteiro mais inventivo, mas a atuação segura e carismática de Rudd segura as pontas.

Renato Caliman
@renato_caliman

Compartilhe

Saiba mais sobre