Cinema com Rapadura

OPINIÃO   segunda-feira, 21 de outubro de 2019

Cyrano Mon Amour (2018): a arte imita a vida

Inspirada em uma encantadora história real, a comédia francesa encontra nos bastidores de um lendário personagem teatral uma carta de amor à arte.

Famoso por seu notório e gigantesco nariz, o autor Cyrano de Bergerac se tornou um inesquecível personagem, imortalizado no imaginário francês. Grande escritor e habilidoso esgrimista, já foi retratado em inúmeros livros, filmes e, principalmente, peças de teatro, vivido por diferentes artistas e recebido, até hoje, novas releituras, séculos após o seu falecimento. A construção desse invejável legado, no entanto, jamais teria sido possível sem o auxílio de outra figura muito importante: o dramaturgo Rostand, responsável pelo espetáculo teatral que popularizou Bergerac. Não tão lembrado quanto seu protagonista, é ele que assume a liderança no cômico “Cyrano Mon Amour“, envolvente longa dirigido pelo estreante Alexis Michalik, que busca corrigir essa infeliz injustiça do tempo.

Às vésperas do início do século XX, o poeta Edmond Rostand (Thomas Solivérès, “Os Intocáveis“) busca, sem sucesso, alcançar o estrelato através de suas peças sustentadas por versos. Abalado pela má recepção das obras e desgastado pelas responsabilidades exigidas pela esposa e filhos, passa dois anos sofrendo de um terrível bloqueio criativo, incapaz de produzir sequer um parágrafo. Quando o famoso ator Constant Coquelin (Olivier Gourmet), fã de seu primeiro trabalho, o chama para escrever uma nova comédia, ele não tarda em aceitar o convite, mergulhando em uma alucinada corrida contra o tempo para entregar algo grandioso em menos de três semanas. Ambientada na lindíssima “Cidade das Luzes”, projetada em uma excelente recriação de época, Michalik escolhe essa sedutora aventura verídica, utilizando-a para discutir as influências que aqueles que admiramos exercem sobre nossas criações.

Dono de uma direção eficiente, o novato demonstra um bom domínio sobre as câmeras, construindo a partir delas sequências ambiciosas e carregadas de detalhes. Chamam a atenção do espectador, entre outras, as diversas cenas em que ele explora a riqueza dos palcos cênicos através de uma visão giratória, compondo vibrantes imagens coloridas com base nos figurantes fantasiados presentes em tela. É igualmente marcante, além disso, a belíssima passagem em que transporta a performance teatral para uma estonteante locação externa, traduzindo de forma gráfica a imaginação de seus personagens e até onde ela é capaz de levá-los. À exceção desses momentos, a cinematografia de Michalik se mostra um tanto operante (embora jamais ruim), reservando o verdadeiro trunfo ao seu simpático roteiro.

Consideravelmente simples, o texto acerta ao estabelecer engraçados paralelos entre a obra e o íntimo de Rostand, descobrindo nas diferentes situações da vida pessoal do artista as inspirações que o levam a produzir. É ajudando o amigo e astro Léo (Tom Leeb) a conquistar a amada através da poesia, por exemplo, que ele encontra sua musa, Jeanne (Lucie Boujenah), mulher que passa então a ser a base do romance que consagraria o narigudo Bergerac. Trocando cartas no nome do colega, começa a extrair delas fabulosos diálogos, projetando sua paixão artística na linda moça enquanto questiona seus sentimentos. Dessa forma, a escrita do diretor monta um delicioso conto sobre como as vivências pessoais moldam nossa capacidade criativa, estabelecendo, em uma narrativa que vai do fracasso ao sucesso, o poder da arte como uma força atemporal e capaz de sobreviver às mais radicais transformações históricas. Prova disso, é a excelente cena em que Edmond assiste, em uma pequena feira, às clássicas projeções dos irmãos Lumière (grandes precursores do cinema), que representam as múltiplas formas que a transmissão de histórias tem assumido ao longo das eras.

Apesar dos inegáveis méritos do cineasta, seria injusto não reconhecer que parte considerável do carisma da produção se deve ao bom elenco. Thomas Solivèrés cativa no papel do poeta desvalorizado e frustrado, um homem que varia da insegurança ao orgulho na jornada para provar seu próprio valor. Quem chama ainda mais atenção são os coadjuvantes, com destaque para as encantadoras figuras encarnadas por Tom Leeb e Olivier Gourmet. Tom diverte ao viver um ator mulherengo, talentoso e, ao mesmo tempo, incapaz de se expressar, sendo crível a ingenuidade de um personagem bobo que segue a vida recitando falas escritas por outras pessoas com; e Oliver domina os maneirismos e a fisicalidade para desenvolver o personagem mais carismático e inesquecível de todo o longa. Merece destaque também a dupla de banqueiros interpretada por Simon Abkarian e Marc Andréoni, que desempenham excelentes alívios cômicos.

No arriscado meio da sétima arte, todavia, nem tudo é perfeito, e com filme não é diferente. Mesmo que este aspecto se justifique, em parte, pelo contexto histórico da obra, há um fraco tratamento às figuras femininas, reduzindo-as, por vezes, à beleza física e, em casos mais drásticos, a meros satélites na vida de seus protagonistas. De forma mais direta, apresenta-se de forma extremamente precária a cônjuge de Edmond, trabalhando-a como uma mulher totalmente dependente de seu marido e impossibilitada de seguir objetivos próprios. Por não ser tão distante da realidade da época, tal aspecto não reduz consideravelmente o que é entregue, mas há de se admitir que o desenvolvimento dessas personalidades poderia ser menos unilateral.

Com tudo isso, “Cyrano Mon Amour” exibe uma simpática carta de amor à criatividade, apresentando, além disso, um diretor estreante com muito potencial. Embora imperfeito, o filme encontra nos bastidores de uma importante figura da cultura francesa uma história sobre superação, mostrando com carinho que os eventos pelos quais passamos, e, principalmente, aqueles que amamos, moldam quem somos. Divertido, ele é uma ótima comédia para os fãs de cinema e de arte em geral.

 

Davi Galantier Krasilchik
@davikrasilchik

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