Cinema com Rapadura

OPINIÃO   segunda-feira, 14 de outubro de 2019

Compra-me um Revólver (2018): um conto incompleto

Bem intencionado, o filme mexicano comove com uma bela mensagem e bons personagens, mas mostra-se esquecível diante da falta de personalidade.

Em um futuro próximo dominado pelo narcotráfico, a pequenina Huck (Matilde Hernandez) passa dias cinzentos em seu pequeno trailer ao lado do pai (Rogelio Sousa). Obrigada a usar uma máscara diariamente e impedida de manter longos cabelos, ela se vê forçada a esconder o seu gênero, inserida em uma sociedade na qual as mulheres são exterminadas ou reduzidas à prostituição. Dessa forma, vive em constante tensão e perigo, traumatizada pela falta de uma figura materna e deixada aos cuidados de um homem que, embora extremamente carinhoso, sofre com sérias dependências químicas e mantém relações com o cartel mais poderoso da região em que vive. Ambientada em um México opressivo, é essa a narrativa que o diretor Julio Hernández Cordón tenta explorar em seu longa “Compra-me um revólver“, eficiente drama inserido em um sistema distópico.

Sensível, o diretor é muito hábil na construção de suas personagens, extraindo do desenvolvimento da dupla principal o seu maior mérito. Explorando em especial a pureza do relacionamento familiar, ele guia o espectador através dos diferentes conflitos do universo mexicano, trabalhando estes contrastes como pano de fundo de um conto acerca dos desdobramentos necessários à manutenção do amor em condições cruéis. Dessa forma, induz facilmente o espectador a torcer pelos protagonistas, criando situações carregadas de tensão que compensam, em parte, o vagaroso ritmo da produção. Vale destacar, por exemplo, a envolvente sequência em que Huck se aventura em campos hostis vigiados pelos milicianos, para esconder as drogas do querido pai, sujeitando-se a inimagináveis perigos. É igualmente memorável, além disso, o complexo aprofundamento de seu responsável, uma figura dividida entre um devastador vício e a inabalável vontade de proteger, a qualquer custo, sua amada menina.

Seria injusto não reconhecer, entretanto, que tal conquista tem seus alicerces nas grandes performances centrais, encontrando sua receita na incrível credibilidade expressa pelo elenco. Embora Sousa impressione com o retrato do homem dúbio, por vezes o grande causador das complicações que permeiam aquela que quer tanto proteger, é a simpática Hernandez quem realmente rouba a cena. Mesmo um pouco diminuída por uma desnecessária narração em off, a atriz mirim conquista por meio de uma extraordinária naturalidade, transmitindo a inocência de uma criança com tamanha perfeição que não demonstra nem estar atuando. Inserida nas mais desumanas circunstâncias, sustenta magistralmente a infantilidade de sua personagem, conquistando o público com uma figura fofa e sonhadora que tem no dente perdido da mãe seu amuleto de esperanças (comportamento extremamente comum nessa idade).

Não suficiente, o longa ainda transmite uma comovente história sobre a força do amor parental, mostrando-se ainda mais profundo em seu interessante final, no qual é igualmente explicitada uma importante crítica à segregação entre gêneros. Apresentando um lindo discurso sobre a imoralidade em inferiorizar as mulheres diante dos homens (evidenciando que em momentos de desespero suas diferenças tornam-se mínimas), ele, entretanto, peca bastante na construção de seu universo. Genérico, faltam atrativos e traços mais particulares no futuro idealizado em “Compra-me um revólver”, aspectos que dificultam o envolvimento da plateia com a obra, algo também imposto pelo seu ritmo lento, embora não muito extensa. É simples, por um lado, entender que seu grande objetivo não está na criação de uma vasta mitologia. No entanto, a falta de maiores explicações acerca dos fatores que direcionaram àquela terrível realidade, ou mesmo de uma abordagem mais profunda quanto ao abominável papel imposto às mulheres nesta mesma, fazem desta uma experiência incompleta e, principalmente, esquecível dentro de um tema já tão explorado.

Dessa forma, todos esses aspectos fazem de “Compra-me um revólver” um filme extremamente sensível e bem atuado, mas que infelizmente nunca atinge todo o seu potencial. Positivo, carrega consigo uma poderosa mensagem, mas não apresenta, todavia, formas muito originais para transmiti-la. Vale pelas ótimas personagens, embora será difícil sobreviver ao teste do tempo.

Davi Galantier Krasilchik
@davikrasilchik

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